segunda-feira, abril 23, 2007

Texto de um amigo sobre Otelo

Hoje, dia 22 de Abril tive a grata satisfação do meu herói aqui referido me ter telefonado, dizendo que tinha descoberto este texto na net e me queria agradecer pessoalmente as palavras a Ele dirigidas, pedindo-me apenas uma pequena correcção cronológica no texto. Eu que sou tão pequenino, eu que sou apenas uma centelha do pó das estrelas universal senti-me grande, porque um grande homem ligou a um pequeno texto e teve a necessidade de ligar ao seu desconhecido autor a agradecer-lhe. Sinto-me…Um misto de coisas…Afinal os heróis podem ter rosto humano e ligarem a nós, seres que a história nunca referirá a não ser se por um raro acaso portentoso fizermos parte dela.
Obrigado meu Herói, e se já te admirava, mais admirei ainda por um telefonema que teve todo o significado do mundo para mim.
Miguel Gomes


EU E O OTELO
Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 alguns militares puseram em marcha uma Revolução que acabou pacificamente com perto de 50 anos de ditadura em Portugal. A maior parte destes militares eram idealistas de esquerda que queriam para a nação uma nova era de prosperidade e de paz, no rescaldo da guerra colonial que durou entre 1961-1974.
Com o tempo a ala menos esquerdista da politica acabou por, em eleições livres e democráticas, assumir um poder que nunca mais deixou, sendo que os governos desde então foram rotativamente assumidos pelo Partido Socialista (mas de orientação mais ao centro…) e o Partido Social Democrata (algo liberais mas situados no espectro direitista).
Apesar do sonho ter sido desfeito, os militares aceitaram o resultado das eleições, deixando o povo assumir o comando dos seus destinos e reclamando para si o lugar na história de terem estabelecido uma democracia e não de terem assumido e não largado mais as rédeas do poder.
Foi uma Revolução exemplar, praticamente sem derramamento de sangue, foi um exemplo para a Europa e o mundo de uma transição pacifica duma forma de poder autocrático para uma democracia plena que com o tempo se voltou para a União Europeia e se integrou exemplarmente no espírito dela.
Desde sempre que fui um admirador desta Revolução exemplar. Hoje, quando estava a fazer umas horas de voluntariado numa Associação que preserva a memória da Revolução num espólio cada vez mais rico de documentos e testemunhos quer escritos quer orais, cruzei-me pela segunda vez com o cérebro da revolução de Abril. Chama-se Otelo Saraiva de Carvalho que na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 foi ele quem comandou e coordenou as operações e dirigiu as diferentes unidades militares que fizeram cair o poder fascista.
Homem controverso, envolveu-se na política mas nunca foi eleito para cargo nenhum, sendo no entanto um dos ícones da Revolução que eu admirei desde que me lembro de quem sou. Quando decorriam as eleições presidenciais de 1976 a que ele se candidatou, cruzei-me com ele no sul de Portugal onde ele andava a fazer campanha. Claro, eu tinha apenas 5 anos e sabia apenas que era uma espécie de um herói que vi bem perto de mim e ao qual sorri e acenei, incentivado pelos meus pais. Com o tempo aprendi e li o que foi a Revolução e a admiração inicial incutida pelos familiares passou a ser autêntica, genuína, fruto da leitura e do espírito que cultivei desde então.
Hoje, a televisão foi ao Centro, e avisaram-me que o Otelo lá estaria, sendo pois inevitável que o fosse conhecer pessoalmente, mas ele chegou demasiado cedo, estando eu na cozinha a beber um café e a fumar um cigarro quando ouvi a sua voz personalizada à entrada. Acalmei-me, acabei de fumar, pus-me direito e dirigi-me ao meu herói com vontade de o cumprimentar e, se pudesse, lhe dar algumas palavritas…Já sabia que ele era uma pessoa extremamente acessível, mas a sua disponibilidade espantou-me. Apresentei-me como admirador seu e como colaborador itinerante daquele Centro, pedindo-lhe que me esclarecesse algumas dúvidas e mitos da revolução que as minhas leituras e fontes não o tinham conseguido fazer, sendo que de imediato (e no meio de uma enorme azafama de jornalistas e técnicos a cruzarem-se connosco) ele me contou aspectos inéditos da Revolução e da personalidade de alguns dos intervenientes. Salvo erro a conversa durou apenas 15 minutos, mas fiquei orgulhoso por terem sido uns “15 minutos meus, com o meu herói”, homem polémico (mas qual é o herói que não o é…), mas bom, com um bom fundo como o vi quando o olhei bem olhos nos olhos, quando ele me tratou como um igual, sendo Ele uma pessoa que ficou na história, e eu, apenas um pedacinho da essência pó das estrelas que está a tentar ter o seu pequeno lugar no mundo…Segundo me diz a minha mãe, a seguir ao nascimento meu e do meu irmão, o 25 de Abril foi o dia mais feliz da sua vida, e por isso, pela democracia alcançada, pela liberdade em que vivemos, estarei eternamente grato àqueles militares e em especial àquele homem que personifica um espírito cada vez mais raro. No final, sai mais cedo do Centro para ir para casa ver a emissão em directo, perto dos meus a quem a Revolução diz tanto. Cumprimentei toda a gente como é meu hábito e fui ter com o Otelo, apertando-lhe a mão como se o fizesse a um amigo, a um igual, pois somos iguais no sonho de vermos o nosso Portugal prosperar e viver os dias tranquilos que felizmente vivemos, senti-me perto do meu Herói, e enquanto lhe apertava a mão e o olhava nos olhos, desejei vê-lo mais vezes e agradeci-lhe a maravilhosa madrugada de há 33 anos em que ele comandou um grupo de homens simples mas temerários que nos tiraram das trevas e nos levaram para a luz de vivermos em democracia e sem medo, sobretudo de expressarmos as nossas ideias e livre pensamento sem temer que nos prendessem. Nunca mais esquecerei este dia que até foi o dia de anos do meu querido irmão, porque, pela primeira vez na vida conheci pessoalmente um Herói, afinal tão humano como nós e com o qual identifico parte da minha personalidade, não tanto por politiquices mas pela forma simples e sonhadora de estarmos na vida e de tentarmos fazer dessa vida uma bela oportunidade de sermos felizes e realizados, de sermos autênticos, genuínos e não camuflados em receios de sermos criticados. Para mim o Otelo é assim, e é por isso que o sempre admirarei livre e não dogmaticamente, como se admiram os heróis que transformaram as nossas vidas e dos nossos descendentes para sempre.

Miguel Gomes