O Dr. Sarmento, Ministro de Estado e da Presidência, com tutela da Comissão da Igualdade para os Direitos das Mulheres, sentiu a necessidade de se exprimir publicamente (Público, 12.08.2004) no âmbito de um debate que os católicos vêm travando a propósito de um documento exarado pelo Vaticano (“Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no Mundo”).
O Ministro da República Portuguesa, que como é sabido é laica e não confessional, vem a terreno discutir as opiniões expressas por uma Igreja. É legítimo! Tanto mais que a Igreja Católica tem uma forte implantação na nossa sociedade.
O que impressiona neste texto é a pobreza reflexiva e crítica, o tom indulgente e passivo de um governante com responsabilidades nesta área. O Senhor Ministro ancora o seu discurso numa meia-dúzia de citações dos doutrinadores da Igreja e apenas transmite uma mensagem: a maternidade é a condição maior e exclusiva das mulheres. E insiste que “a maternidade (...) marca de forma fundamental toda a sua [das mulheres] vida”.
En passant, diz-se muito preocupado com os problemas concretos das mulheres, mas não indica uma medida, um projecto, um caminho no sentido da promoção dos direitos das mulheres. Apetece dizer: “palavras, apenas palavras!” Naturalmente tem ainda o cuidado de imputar considerações vagas a “uma certa esquerda”. Não se percebe que esquerda é essa, nem que perspectivas sejam! Segue pois a boa escola maoísta de produzir imputações genéricas e abstractas ao adversário!
E conclui ainda que o grande desafio é permitir conciliar a vida familiar e a vida profissional das mulheres. Diga-se já: e dos homens?!
Estamos perante o mais puro discurso reaccionário no âmbito da promoção dos direitos das mulheres.
Um governo que tem promovido o desemprego, a manutenção de salários baixos, que tem apostado no desinvestimento nas redes de educação pré-escolar e escolar, apenas pode demagogicamente fazer apelo ao discurso da Igreja para esconder, na sua sombra, a ausência de projecto de ambição e de esperança.
O Ministro parte de um postulado biológico (a exlusividade da maternidade para o sexo feminino) para afirmar uma política (inexistente). Esta linha de raciocínio – desde sempre típica da direita mais conservadora – nada traz de novo ao debate! É vazia e sexista!
Com este texto senti-me revoltado enquanto homem e enquanto Pai!
Se à mulher é dado o privilégio da Maternidade, ao homem é concedido o privilégio da Paternidade. Um política de promoção dos direitos das mulheres passa por uma promoção da paternidade, tal como foi feito nos governos do Eng. Guterres, de que o direito-dever de gozar alguns dias de licença após o parto é apenas um exemplo! Passa pela promoção das famílias e de apoio aos mais carenciados, de que o Rendimento Mínimo Garantido e os programas de inserção na vida activa são bandeira. A promoção da condição feminina passa por um discurso radicalmente diverso do biologismo primário proposto: a transformação da sociedade consegue-se através de uma reorganização das estruturas em que o ideal que se visa atingir na nossa República – liberdade, igualdade e fraternidade – se concretize contra alguns pressupostos biológicos que possam existir.
Senti-me ultrajado enquanto pai, porque se posso admitir que o Senhor Ministro o que mais pretenda das suas filhas é que lhe dêem netos, eu o que desejo da minha filha e das filhas dos meus concidadãos do mundo inteiro é que estas tenham ao seu dispor todas as condições para o livre desenvolvimento da sua personalidade, a livre e empenhada construção do seu projecto de vida! O qual poderá – naturalmente – incluir a maternidade, mas não é essa capacidade que deverá “marcar de forma fundamental toda a sua vida”! É antes a capacidade de ser cidadã!
E ser cidadã, implica não apenas ver garantidos os seus direitos fundamentais, mas também ter acesso à educação, ao emprego, vida púbica, política e empresarial, exactamente nas mesmas condições que teria um filho meu, se o tivesse!
E o papel dos governantes deveria ser o de adoptar uma política activa de promoção da cidadania nas mulheres, de que as quotas e mesmo a paridade são um instrumento fundamental. E quanto à maternidade, Senhor Ministro, que foi feito no âmbito da promoção da saúde familiar e reprodutiva durante estes dois anos? Que foi feito no âmbito da política da luta contra o alcoolismo e a droga? Que foi feito no apoio ao pré-escolar? Que políticas de educação cívica foram levadas a cabo no sentido da valorização do papel da mulher na sociedade e do homem no lar?
Os números são simples, mas dolorosos: em dois anos Portugal desceu 3 lugares na tabela do índice de desenvolvimento humano. E quando assim é, infelizmente, são as mulheres, mães e não mães, as primeiras a pagar a factura!
André Gonçalo Dias Pereira
P.S: É uma alegria saber que o Dr. Sarmento vai deixar de ser Ministro dentro de poucos dias...