Responsabilidade
Médica, Segurança do Doente e a construção de um sistema mais justo de
compensação pelo dano injusto
Prof. Doutor André
Dias Pereira
Diretor do Centro de Direito Biomédico da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
A Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina, em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 2001, postula:
Artigo 24.º (Reparação
de dano injustificado)
“A pessoa que tenha sofrido um dano injustificado
resultante de uma intervenção tem direito a uma reparação equitativa nas
condições e de acordo com as modalidades previstas na lei.”
Infelizmente, os pacientes
portugueses que sejam vítimas de um erro medico, têm à sua frente um calvário
jurídico e processual que obriga as pessoas a despender grandes recursos
económicos e a suportar uma demora processual extrema e com muitas dificuldades
probatórias.
A relação jurídica entre o
prestador de cuidados de saúde (normalmente uma equipa complexa) e o paciente
assume diferentes perspetivas no plano jurídico: ora é vista sob a forma de
contrato, ora sob a forma de uma relação extranegocial, mas que assenta sempre nos
seguintes direitos básicos do paciente:
-
o direito a
ser informado, a consentir ou a recusar o tratamento, incluindo através de uma
diretiva antecipada de vontade,
-
o direito a
um processo clínico e o acesso à informação de saúde,
-
o direito ao
sigilo médico e à proteção dos seus dados pessoais,
-
e –
naturalmente – o direito a um tratamento adequado de acordo com as leges
artis e à segurança do doente.
Desde os estudos de Harvard e do Institute of Medicine, já do século passado, que sabemos que a atividade médica causa muitos danos, muitos
evitáveis, seja em razão das infeções nosocomiais, seja dos erros de medicação,
ou de falhas na transmissão da informação dentro da equipa.... a exigir uma
reformulação do direito da responsabilidade médica, que atenda às exigências da
segurança do doente. Donde, não pode
o jurista manter-se atavicamente preso a concepções jurídicas de um positivismo
próprio de uma economia agrária ou quanto muito de uma primeira ou segunda
industrialização...
Por tudo isto, impõe-se
uma mudança de paradigma: o objetivo do Direito da Medicina deve ser o
de contribuir para a segurança do
paciente, a gestão do risco e a clinical
governance. E com vista a
essa mudança de paradigma, a doutrina mais atenta vem defendendo uma reforma
profunda que passa pelos eixos da institucionalização
da responsabilidade, socialização do
risco e a criação de instâncias
alternativas de resolução de conflitos.
No plano do direito em
vigor, defendemos que devem os tribunais lançar mão das provas prima facie. As
dificuldades de prova da violação das leges
artis e da causalidade são de tal ordem que deve haver lugar para uma facilitação da prova por presunções
e, em certos casos, à inversão do
ónus da prova – casos esses desde há décadas decantados pela
jurisprudência germânica e que deveremos também abraçar nos nossos tribunais,
por exemplo, no caso de inversão do ónus da prova através documentação médica incompleta ou
errada ou por se destruição de meios de prova e mesmo, nos casos de “dano
anormal e desproporcionado” – na expressão da doutrina espanhola.
Acrescente-se ainda que
não é apenas no domínio da reparação do “dano injusto” que tarda um regime unitário,
mas também uma lei dos direitos dos
pacientes, incluindo matérias relativas ao consentimento informado,
diretivas antecipadas de vontade, processo clínico, a regulação das relações
contratuais com as instituições de saúde, a exemplo do que acontece em tantos
ordenamentos jurídicos, v.g., no Código
Civil holandês, desde 1995 e o Código
Civil alemão, desde 2013.
Uma
reforma do regime dos Direitos dos pacientes e da Responsabilidade médica é,
pois, um imperativo nacional! Uma lei que contribua para uma melhoria das
condições reais de indemnização pelo “dano injustificado” e que permita reforçar
a hospitalidade da medicina, num
ambiente que reforce a segurança do
paciente.