quarta-feira, dezembro 06, 2017

Responsabilidade Médica, Segurança do Doente e a construção de um sistema mais justo de compensação pelo dano injusto

Responsabilidade Médica, Segurança do Doente e a construção de um sistema mais justo de compensação pelo dano injusto

Prof. Doutor André Dias Pereira
Diretor do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 2001, postula:

Artigo 24.º (Reparação de dano injustificado)
“A pessoa que tenha sofrido um dano injustificado resultante de uma intervenção tem direito a uma reparação equitativa nas condições e de acordo com as modalidades previstas na lei.”

Infelizmente, os pacientes portugueses que sejam vítimas de um erro medico, têm à sua frente um calvário jurídico e processual que obriga as pessoas a despender grandes recursos económicos e a suportar uma demora processual extrema e com muitas dificuldades probatórias.

A relação jurídica entre o prestador de cuidados de saúde (normalmente uma equipa complexa) e o paciente assume diferentes perspetivas no plano jurídico: ora é vista sob a forma de contrato, ora sob a forma de uma relação extranegocial, mas que assenta sempre nos seguintes direitos básicos do paciente:
-       o direito a ser informado, a consentir ou a recusar o tratamento, incluindo através de uma diretiva antecipada de vontade,
-       o direito a um processo clínico e o acesso à informação de saúde,
-       o direito ao sigilo médico e à proteção dos seus dados pessoais,
-       e – naturalmente – o direito a um tratamento adequado de acordo com as leges artis e à segurança do doente.

Desde os estudos de Harvard e do Institute of Medicine, já do século passado, que sabemos que a atividade médica causa muitos danos, muitos evitáveis, seja em razão das infeções nosocomiais, seja dos erros de medicação, ou de falhas na transmissão da informação dentro da equipa.... a exigir uma reformulação do direito da responsabilidade médica, que atenda às exigências da segurança do doente. Donde, não pode o jurista manter-se atavicamente preso a concepções jurídicas de um positivismo próprio de uma economia agrária ou quanto muito de uma primeira ou segunda industrialização...

Por tudo isto, impõe-se uma mudança de paradigma: o objetivo do Direito da Medicina deve ser o de contribuir para a segurança do paciente, a gestão do risco e a clinical governance. E com vista a essa mudança de paradigma, a doutrina mais atenta vem defendendo uma reforma profunda que passa pelos eixos da institucionalização da responsabilidade, socialização do risco e a criação de instâncias alternativas de resolução de conflitos.

No plano do direito em vigor, defendemos que devem os tribunais lançar mão das provas prima facie. As dificuldades de prova da violação das leges artis e da causalidade são de tal ordem que deve haver lugar para uma facilitação da prova por presunções e, em certos casos, à inversão do ónus da prova – casos esses desde há décadas decantados pela jurisprudência germânica e que deveremos também abraçar nos nossos tribunais, por exemplo, no caso de inversão do ónus da prova através documentação médica incompleta ou errada ou por se destruição de meios de prova e mesmo, nos casos de “dano anormal e desproporcionado” – na expressão da doutrina espanhola.

Acrescente-se ainda que não é apenas no domínio da reparação do “dano injusto” que tarda um regime unitário, mas também uma lei dos direitos dos pacientes, incluindo matérias relativas ao consentimento informado, diretivas antecipadas de vontade, processo clínico, a regulação das relações contratuais com as instituições de saúde, a exemplo do que acontece em tantos ordenamentos jurídicos, v.g., no Código Civil holandês, desde 1995 e o Código Civil alemão, desde 2013.

Uma reforma do regime dos Direitos dos pacientes e da Responsabilidade médica é, pois, um imperativo nacional! Uma lei que contribua para uma melhoria das condições reais de indemnização pelo “dano injustificado” e que permita reforçar a hospitalidade da medicina, num ambiente que reforce a segurança do paciente.