A Lei n.º
83/2015, de 5 de agosto veio acrescentar ao tipo legal de crime Importunação
sexual, previsto no art. 170.º do Código Penal, os vocábulos: “formulando
propostas de teor sexual”.
E assim o velhinho artigo relativo ao exibicionismo
viu aumentado o seu alcance e reza agora: “Quem importunar outra pessoa,
praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de
teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena
de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe
não couber por força de outra disposição legal.”
É importante mostrar o artigo na sua globalidade,
para podermos fazer uma interpretação
sistemática.
Importa ainda ver qual o capítulo do Código Penal
em que tal norma incriminadora se insere.
Esta norma insere-se no Capítulo V, que se
subdivide em duas secções: Secção I – Crimes Contra a Liberdade Sexual e Secção
II – Crimes Contra a autodeterminação sexual.
Vejamos:
CAPÍTULO V
Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação
sexual
SECÇÃO I
Crimes contra a liberdade sexual
Artigo 163.º - Coacção sexual
Artigo 164.º - Violação
Artigo 165.º - Abuso sexual de pessoa incapaz de
resistência
Artigo 166.º - Abuso sexual de pessoa internada
Artigo 167.º - Fraude sexual
Artigo 168.º - Procriação artificial não consentida
Artigo 169.º - Lenocínio
Artigo 170.º - Importunação sexual
SECÇÃO II
Crimes contra a autodeterminação sexual
Artigo 171.º - Abuso sexual de crianças
Artigo 172.º - Abuso sexual de menores dependentes
Artigo 173.º - Actos sexuais com adolescentes
Artigo 174.º - Recurso à prostituição de menores
Artigo 175.º - Lenocínio de menores
Artigo 176.º - Pornografia de menores
Artigo 176.º-A - Aliciamento de menores para fins
sexuais
Artigo 177.º - Agravação
Artigo 178.º - Queixa
Artigo 179.º - Inibição do poder paternal e
proibição do exercício de funções
Importa ainda referir que este novo tipo legal de
crime se insere numa lei que criminaliza ainda:
·
a Mutilação genital feminina (Artigo 144.º-A),
·
a Perseguição (Artigo 154.º-A) e
·
o Casamento forçado (Artigo 154.º-B)
·
– ou seja insere-se numa intervenção legislativa
que visou tutelar penalmente alguns comportamentos que afetam sobretudo as
mulheres, visando assim dar um contributo na luta contra a discriminação de
género.
Neste pequeno artigo versaremos apenas a questão do
bem jurídico protegido por esta incriminação dos “piropos” com teor sexual.
O
legislador introduz a norma de importunação sexual nos crimes contra a
liberdade sexual. Donde, o bem jurídico parece ser a liberdade sexual! Ou seja,
a liberdade de não ser vítima de uma proposta sexual no meio da rua por parte
de um desconhecido!
Entremos
na análise gramatical da norma.
Analisando
o tipo legal de crime verificamos os seguintes elementos:
i) Quem
importunar outra pessoa – ou seja: ser inoportuno, perturbar, ser incómodo, não
desejado, não solicitado, não aceite, não tolerado
e
ii) formular
propostas de teor sexual - proferir palavras orais ou escritas de convite/
incitação/ estímulo a práticas, conteúdos, sentidos semânticos de teor sexual.
iii) O
que é o teor sexual? Entendemos aqui que há uma conotação semiótica da prática
de coito, coito anal ou sexo oral, incluindo “atos sexuais de relevo”.
Assim,
preencherá o tipo legal de crime uma afirmação, não solicitada, indesejada,
inoportuna pela qual uma pessoa faz propostas com conteúdo sexual (órgãos
sexuais, partes erógenas do corpo, práticas sexuais).
Tem-se
gerado uma forte celeuma em torno deste crime.
Insistem
muitos em confundir os bens jurídicos. Não está aqui em causa a honra (pode ser aliás muito honroso
ouvir certos “piropos” de teor sexual), nem apenas a reserva da intimidade da vida privada.
Está
em causa um bem jurídico mais fino, mais moderno, que andará na orla de
proteção do "direito a estar só, mesmo que em espaços públicos",
proteção contra a violência de género (sim, este é um comportamento que tem
quase sempre por vítimas as mulheres).
Por
vezes, os juristas, mesmo os mais informados, têm dificuldade em lidar com a
proteção penal de bens jurídicos novos. Veja-se o que se passou e passa no
âmbito do direito à imagem e do direito à palavra, que muitos pensavam estar já
protegidos pela honra ou pela intimidade da vida privada. A verdade é que não
estavam! Era preciso ir mais longe e criar crimes novos para tutelar esses bens
jurídicos e nesse sentido se legislou em 1995 e se criou o tipo legal de crime
de “Gravações e fotografias ilícitas”, hoje previsto no art. 199.º do Código
penal.
É
algo de muito semelhante o que se passa aqui!
O
bem jurídico que se visa proteger é, por um lado, a liberdade sexual, num sentido amplo. O interesse em ter conversas
ou ouvir afirmações de teor sexual apenas com quem se quiser, e onde se quiser.
Em
segundo lugar, visa-se a proteção de um direito
a estar só, nesse reduto muito íntimo da personalidade que configura a
sexualidade e o corpo, mesmo em lugares públicos. Recordando Orlando de Carvalho, a pessoa tem
um direito a estar só, acrescentamos agora,
mesmo na rua. Sim, um direito a uma esfera de não invasão, nos domínios
mais íntimos da personalidade, a saber a sexualidade, como dimensão do direito
à integridade moral.
Assim
sendo, o bem jurídico protegido tem um caráter misto: proteção da liberdade sexual, da reserva da intimidade da esfera sexual, mesmo em espaços públicos,
e da integridade moral.
Tal
justifica-se porque a sexualidade tem uma relevância maior na vida das pessoas,
a justificar que a esfera da intimidade se entrecruze com o mundo da publicidade,
perante agressões inoportunas por parte de terceiros.
Com
efeito, como afirma Clara Sottomayor, “os assédios de rua provocam danos no
desenvolvimento da personalidade e na liberdade das pessoas, máxime jovens
mulheres, e danos sociais também pois impedem a construção da igualdade de
género, obrigando as mulheres a viver com limitações que afetam várias áreas da
vida.”
Concluindo,
a prática de uma importunação sexual, ofende a liberdade sexual, a liberdade de
não ser importunado por terceiros, sem solicitação, fora de um âmbito de
adequação social, para uma prática de extrema intimidade e que tem, na maior
parte das vezes, um sentido des-subjetivante,
apenas transformando a pessoa,
normalmente uma mulher, num objeto, numa res,
à mercê de uma observação do único sujeito da relação, o que viola o
princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP).
André Gonçalo Dias Pereira