sexta-feira, janeiro 01, 2016

O BEM JURÍDICO PROTEGIDO NO CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL – “PIROPOS” – A REFORMA DA Lei n.º 83/2015, de 05/08 – OU DA DESSUBEJTIVAÇÃO DO DESTINATÁRIO DA DECLARAÇÃO!


A  Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto veio acrescentar ao tipo legal de crime Importunação sexual, previsto no art. 170.º do Código Penal, os vocábulos: “formulando propostas de teor sexual”.
E assim o velhinho artigo relativo ao exibicionismo viu aumentado o seu alcance e reza agora: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
É importante mostrar o artigo na sua globalidade, para podermos fazer uma  interpretação sistemática.
Importa ainda ver qual o capítulo do Código Penal em que tal norma incriminadora se insere.
Esta norma insere-se no Capítulo V, que se subdivide em duas secções: Secção I – Crimes Contra a Liberdade Sexual e Secção II – Crimes Contra a autodeterminação sexual.
Vejamos:
CAPÍTULO V
Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual
SECÇÃO I
Crimes contra a liberdade sexual
Artigo 163.º - Coacção sexual
Artigo 164.º - Violação
Artigo 165.º - Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência
Artigo 166.º - Abuso sexual de pessoa internada
Artigo 167.º - Fraude sexual
Artigo 168.º - Procriação artificial não consentida
Artigo 169.º - Lenocínio
Artigo 170.º - Importunação sexual
SECÇÃO II
Crimes contra a autodeterminação sexual
Artigo 171.º - Abuso sexual de crianças
Artigo 172.º - Abuso sexual de menores dependentes
Artigo 173.º - Actos sexuais com adolescentes
Artigo 174.º - Recurso à prostituição de menores
Artigo 175.º - Lenocínio de menores
Artigo 176.º - Pornografia de menores
Artigo 176.º-A - Aliciamento de menores para fins sexuais
Artigo 177.º - Agravação
Artigo 178.º - Queixa
Artigo 179.º - Inibição do poder paternal e proibição do exercício de funções

Importa ainda referir que este novo tipo legal de crime se insere numa lei que criminaliza ainda:
·       a Mutilação genital feminina (Artigo 144.º-A),
·       a Perseguição (Artigo 154.º-A) e
·       o Casamento forçado (Artigo 154.º-B)
·       – ou seja insere-se numa intervenção legislativa que visou tutelar penalmente alguns comportamentos que afetam sobretudo as mulheres, visando assim dar um contributo na luta contra a discriminação de género.

Neste pequeno artigo versaremos apenas a questão do bem jurídico protegido por esta incriminação dos “piropos” com teor sexual.

                  O legislador introduz a norma de importunação sexual nos crimes contra a liberdade sexual. Donde, o bem jurídico parece ser a liberdade sexual! Ou seja, a liberdade de não ser vítima de uma proposta sexual no meio da rua por parte de um desconhecido!

                  Entremos na análise gramatical da norma.
                  Analisando o tipo legal de crime verificamos os seguintes elementos:
i)               Quem importunar outra pessoa – ou seja: ser inoportuno, perturbar, ser incómodo, não desejado, não solicitado, não aceite, não tolerado
                  e
ii)              formular propostas de teor sexual - proferir palavras orais ou escritas de convite/ incitação/ estímulo a práticas, conteúdos, sentidos semânticos de teor sexual.
iii)            O que é o teor sexual? Entendemos aqui que há uma conotação semiótica da prática de coito, coito anal ou sexo oral, incluindo “atos sexuais de relevo”.
                  Assim, preencherá o tipo legal de crime uma afirmação, não solicitada, indesejada, inoportuna pela qual uma pessoa faz propostas com conteúdo sexual (órgãos sexuais, partes erógenas do corpo, práticas sexuais).

                  Tem-se gerado uma forte celeuma em torno deste crime.
                  Insistem muitos em confundir os bens jurídicos. Não está aqui em causa a honra (pode ser aliás muito honroso ouvir certos “piropos” de teor sexual), nem apenas a reserva da intimidade da vida privada.
                  Está em causa um bem jurídico mais fino, mais moderno, que andará na orla de proteção do "direito a estar só, mesmo que em espaços públicos", proteção contra a violência de género (sim, este é um comportamento que tem quase sempre por vítimas as mulheres).
                  Por vezes, os juristas, mesmo os mais informados, têm dificuldade em lidar com a proteção penal de bens jurídicos novos. Veja-se o que se passou e passa no âmbito do direito à imagem e do direito à palavra, que muitos pensavam estar já protegidos pela honra ou pela intimidade da vida privada. A verdade é que não estavam! Era preciso ir mais longe e criar crimes novos para tutelar esses bens jurídicos e nesse sentido se legislou em 1995 e se criou o tipo legal de crime de “Gravações e fotografias ilícitas”, hoje previsto no art. 199.º do Código penal.
                  É algo de muito semelhante o que se passa aqui!

                  O bem jurídico que se visa proteger é, por um lado, a liberdade sexual, num sentido amplo. O interesse em ter conversas ou ouvir afirmações de teor sexual apenas com quem se quiser, e onde se quiser.
                  Em segundo lugar, visa-se a proteção de um direito a estar só, nesse reduto muito íntimo da personalidade que configura a sexualidade e o corpo, mesmo em lugares públicos.  Recordando Orlando de Carvalho, a pessoa tem um direito a estar só, acrescentamos agora,  mesmo na rua. Sim, um direito a uma esfera de não invasão, nos domínios mais íntimos da personalidade, a saber a sexualidade, como dimensão do direito à integridade moral.

                  Assim sendo, o bem jurídico protegido tem um caráter misto: proteção da liberdade sexual, da reserva da intimidade da esfera sexual, mesmo em espaços públicos, e da integridade moral.
                  Tal justifica-se porque a sexualidade tem uma relevância maior na vida das pessoas, a justificar que a esfera da intimidade se entrecruze com o mundo da publicidade, perante agressões inoportunas por parte de terceiros.
                  Com efeito, como afirma Clara Sottomayor, “os assédios de rua provocam danos no desenvolvimento da personalidade e na liberdade das pessoas, máxime jovens mulheres, e danos sociais também pois impedem a construção da igualdade de género, obrigando as mulheres a viver com limitações que afetam várias áreas da vida.”
                 
                 
                  Concluindo, a prática de uma importunação sexual, ofende a liberdade sexual, a liberdade de não ser importunado por terceiros, sem solicitação, fora de um âmbito de adequação social, para uma prática de extrema intimidade e que tem, na maior parte das vezes, um sentido des-subjetivante, apenas transformando a pessoa, normalmente uma mulher, num objeto, numa res, à mercê de uma observação do único sujeito da relação, o que viola o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP).

 
André Gonçalo Dias Pereira