quarta-feira, novembro 21, 2012

Erro médico e Responsabilidade civil médica

Versão mais extensa do
TEXTO PUBLICADO no Jornal SOL, 16 de novembro de 2012, na página 33



Responsabilidade Médica: Por um Sistema Mais amigo do Paciente e do Médico
Guilherme de Oliveira, Rui Cascão e André Pereira
Centro de Direito Biomédico – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Projeto n.º FCOMP-01-0124-FEDER-014435 “Para um quadro legal de Responsabilidade Médica menos agressivo, mais eficaz e mais favorável à redução do erro médico” (Ref. FCT PTDC/CPJ-JUR/111133/2009), do Centro de Direito Biomédico, financiado por fundos nacionais através da FCT/MCTES (PIDDAC) e co-financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do COMPETE – Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC).

A medicina é uma ciência antiga e respeitada. Graças a ela, nos tempos contemporâneos, a esperança e qualidade de vida do ser humano aumentou exponencialmente. Apesar do seu desenvolvimento, a medicina está longe de ser perfeita ou totalmente segura. A prestação de cuidados de saúde envolverá sempre riscos, dependendo da natureza do ato médico, que a concretizarem-se, podem causar incapacidade ou até mesmo a morte do paciente.
Quando um paciente é vítima de um erro ou de um acidente terapêutico, para além da dor, do sofrimento causado a si e aos seus próximos, pode sofrer danos significativos: despesas com cuidados de saúde, perda temporária ou de rendimentos durante a convalescença, etc. Nos casos mais graves, em que o paciente fica permanentemente incapacitado, esses danos consistirão ainda em despesas com cuidados continuados, perda de rendimentos em virtude de incapacidade para o trabalho, equipamento especial, auxiliares de motricidade, despesas relacionadas com a remoção de barreiras arquitectónicas, entre outros.
Atualmente, de forma a ser indemnizado do dano sofrido, o paciente que sofreu dano em virtude da prestação de cuidados de saúde tem, em regra, o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil. Terá nomeadamente que provar o dano sofrido, a ilicitude (violação das leges artis, ou seja, os padrões e regras de diligência profissional), a culpa do prestador de cuidados de saúde, e finalmente o nexo de causalidade entre o ato médico e o dano sofrido. O recurso aos tribunais envolve despesas avultadas, um período longo de resolução da disputa, stress processual, e a deterioração da relação médico-doente. Os próprios profissionais de saúde não ficam imunes aos inconvenientes da resolução judicial do litígio, incorrendo em despesas, sofrendo também eles o stress processual, podendo ainda sofrer perda de reputação em consequência da publicidade do processo. Refira-se ainda que os inconvenientes relacionados com a necessidade de recorrer aos tribunais leva a que frequentemente os pacientes desistam de deduzir pedido indemnizatório e, quando recorrem, muitas vezes não têm sucesso por dificuldades de prova.
O atual regime jurídico da responsabilidade civil médica assenta ainda nos pressupostos do direito civil clássico, que se foi relevando adequado no passado. Com a introdução do SNS, o acesso aos cuidados de saúde universalizou-se, e consequentemente aumentaram os níveis de atividade dos prestadores de cuidados de saúde. Por outro lado, a medicina evoluiu no sentido do trabalho em equipa, da multidisciplinaridade, sendo mais complexa, especializada e baseada em equipamento tecnológico de ponta. Também os utentes de cuidados de saúde se tornaram mais exigentes, reivindicativos e cientes dos seus direitos. A todas estas considerações acrescem factualidades como o congestionamento dos tribunais, bem como a proteção social dos cidadãos.
O referido aumento dos níveis de atividade no sector da saúde, aliado à maior exigência por parte dos pacientes, levou em muitos ordenamentos jurídicos ao aumento dos pedidos de indemnização relativos a acidentes terapêuticos, salientando as insuficiências do direito constituído nesta matéria. Mais processos de indemnização, indemnizações mais elevadas, prémios de seguro profissional mais elevados e excesso de zelo médico causador de desperdícios caracterizam a denominada “crise da responsabilidade civil médica”.
Perante este novo quadro fáctico, a responsabilidade civil médica foi forçada, um pouco por todo o mundo, a aperfeiçoar-se e reinventar-se. Assim, o paradigma emergente da responsabilidade civil assenta em três princípios estruturantes.
Por um lado, o reequacionamento da relação médico-paciente: o paciente deve participar informada e ativamente, em diálogo constante com o profissional de saúde, nas decisões que concernem ao seu tratamento.
Por outro lado, os acidentes terapêuticos devem ser encarados de uma perspectiva holística, com um novo enfoque do princípio da culpa. Segundo a perspectiva tradicional da responsabilidade civil, esta teria um efeito preventivo sobre os profissionais de saúde: o receio de virem a ser responsabilizados ex post levá-los-ia a serem mais cautelosos ex ante. No entanto, a realidade empírica não valida esta premissa: as causas dos acidentes terapêuticos são complexas, combinando frequentemente erros humanos e falhas organizacionais ao nível do ambiente hospitalar (instalações, equipamentos, infecções hospitalares, etc.). Por isso, impõe-se a regulamentação de sistemas de notificação dos incidentes e eventos adversos, o que exige a colaboração dos profissionais de saúde na descoberta das causas profundas do acidente, bem como a possibilidade de elaboração de protocolos e boas práticas que possam prevenir erros futuros.
Finalmente, o acesso a uma compensação aos pacientes lesados por acidentes médicos deve ser aperfeiçoado. Atualmente, o acesso à indemnização exige normalmente o recurso aos tribunais - dispendioso, moroso e angustiante para todas as partes envolvidas. O aperfeiçoamento do acesso dos pacientes à indemnização poderá consistir no reforço da resolução alternativa de litígios (arbitragem, mediação, conciliação), ou ainda como em alguns ordenamentos jurídicos (Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega, Islândia, França, Nova Zelândia) na criação de sistemas extrajudiciais de ressarcimento do dano médico.
Um Estado Social de Direito que vise a promoção da dignidade da pessoa humana e um Direito da Medicina que procure criar confiança na relação médico-doente deverão promover reformas no sistema de responsabilidade civil médica, que tornem a compensação por danos injustos mais rápida e previsível e que simultaneamente permitam aos médicos aprender com os erros e melhorar o sistema de prestação de cuidados de saúde.