TEXTO PUBLICADO no Jornal SOL, 16 de novembro de 2012, na página 33
Responsabilidade Médica: Por um Sistema
Mais amigo do Paciente e do Médico
Guilherme de Oliveira, Rui Cascão e
André Pereira
Centro de Direito Biomédico – Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra
Projeto n.º FCOMP-01-0124-FEDER-014435 “Para um quadro
legal de Responsabilidade Médica menos agressivo, mais eficaz e mais favorável
à redução do erro médico” (Ref. FCT PTDC/CPJ-JUR/111133/2009), do Centro de
Direito Biomédico, financiado por fundos nacionais através da FCT/MCTES
(PIDDAC) e co-financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER)
através do COMPETE – Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC).
A
medicina é uma ciência antiga e respeitada. Graças a ela, nos tempos
contemporâneos, a esperança e qualidade de vida do ser humano aumentou
exponencialmente. Apesar do seu desenvolvimento, a medicina está longe de ser
perfeita ou totalmente segura. A prestação de cuidados de saúde envolverá
sempre riscos, dependendo da natureza do ato médico, que a concretizarem-se,
podem causar incapacidade ou até mesmo a morte do paciente.
Quando
um paciente é vítima de um erro ou de um acidente terapêutico, para além da
dor, do sofrimento causado a si e aos seus próximos, pode sofrer danos
significativos: despesas com cuidados de saúde, perda temporária ou de
rendimentos durante a convalescença, etc. Nos casos mais graves, em que o
paciente fica permanentemente incapacitado, esses danos consistirão ainda em
despesas com cuidados continuados, perda de rendimentos em virtude de incapacidade
para o trabalho, equipamento especial, auxiliares de motricidade, despesas
relacionadas com a remoção de barreiras arquitectónicas, entre outros.
Atualmente,
de forma a ser indemnizado do dano sofrido, o paciente que sofreu dano em
virtude da prestação de cuidados de saúde tem, em regra, o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil. Terá
nomeadamente que provar o dano sofrido, a ilicitude (violação das leges artis, ou seja, os padrões e
regras de diligência profissional), a culpa do prestador de cuidados de saúde, e
finalmente o nexo de causalidade entre o ato médico e o dano sofrido. O recurso
aos tribunais envolve despesas avultadas, um período longo de resolução da
disputa, stress processual, e a deterioração da relação médico-doente. Os
próprios profissionais de saúde não ficam imunes aos inconvenientes da
resolução judicial do litígio, incorrendo em despesas, sofrendo também eles o
stress processual, podendo ainda sofrer perda de reputação em consequência da
publicidade do processo. Refira-se ainda que os inconvenientes relacionados com
a necessidade de recorrer aos tribunais leva a que frequentemente os pacientes
desistam de deduzir pedido indemnizatório e, quando recorrem, muitas vezes não
têm sucesso por dificuldades de prova.
O atual
regime jurídico da responsabilidade civil médica assenta ainda nos pressupostos
do direito civil clássico, que se foi relevando adequado no passado. Com a
introdução do SNS, o acesso aos cuidados de saúde universalizou-se, e
consequentemente aumentaram os níveis de atividade dos prestadores de cuidados
de saúde. Por outro lado, a medicina evoluiu no sentido do trabalho em equipa,
da multidisciplinaridade, sendo mais complexa, especializada e baseada em
equipamento tecnológico de ponta. Também os utentes de cuidados de saúde se
tornaram mais exigentes, reivindicativos e cientes dos seus direitos. A todas
estas considerações acrescem factualidades como o congestionamento dos
tribunais, bem como a proteção social dos cidadãos.
O referido
aumento dos níveis de atividade no sector da saúde, aliado à maior exigência
por parte dos pacientes, levou em muitos ordenamentos jurídicos ao aumento dos
pedidos de indemnização relativos a acidentes terapêuticos, salientando as
insuficiências do direito constituído nesta matéria. Mais processos de
indemnização, indemnizações mais elevadas, prémios de seguro profissional mais
elevados e excesso de zelo médico causador de desperdícios caracterizam a
denominada “crise da responsabilidade civil médica”.
Perante
este novo quadro fáctico, a responsabilidade civil médica foi forçada, um pouco
por todo o mundo, a aperfeiçoar-se e reinventar-se. Assim, o paradigma
emergente da responsabilidade civil assenta em três princípios estruturantes.
Por
um lado, o reequacionamento da relação
médico-paciente: o paciente deve participar informada e ativamente, em
diálogo constante com o profissional de saúde, nas decisões que concernem ao
seu tratamento.
Por
outro lado, os acidentes terapêuticos
devem ser encarados de uma perspectiva holística, com um novo enfoque do
princípio da culpa. Segundo a perspectiva tradicional da responsabilidade
civil, esta teria um efeito preventivo sobre os profissionais de saúde: o
receio de virem a ser responsabilizados ex
post levá-los-ia a serem mais cautelosos ex ante. No entanto, a realidade empírica não valida esta premissa:
as causas dos acidentes terapêuticos são complexas, combinando frequentemente
erros humanos e falhas organizacionais ao nível do ambiente hospitalar
(instalações, equipamentos, infecções hospitalares, etc.). Por isso, impõe-se a
regulamentação de sistemas de
notificação dos incidentes e eventos adversos, o que exige a colaboração dos
profissionais de saúde na descoberta das causas profundas do acidente, bem como
a possibilidade de elaboração de protocolos e boas práticas que possam prevenir
erros futuros.
Finalmente,
o acesso a uma compensação aos pacientes
lesados por acidentes médicos deve ser aperfeiçoado. Atualmente, o acesso à
indemnização exige normalmente o recurso aos tribunais - dispendioso, moroso e
angustiante para todas as partes envolvidas. O aperfeiçoamento do acesso dos
pacientes à indemnização poderá consistir no reforço da resolução alternativa de litígios (arbitragem, mediação,
conciliação), ou ainda como em alguns ordenamentos jurídicos (Suécia,
Finlândia, Dinamarca, Noruega, Islândia, França, Nova Zelândia) na criação de sistemas extrajudiciais de ressarcimento do
dano médico.
Um
Estado Social de Direito que vise a promoção da dignidade da pessoa humana e um
Direito da Medicina que procure criar confiança na relação
médico-doente deverão promover reformas no sistema de responsabilidade civil
médica, que tornem a compensação por danos injustos mais rápida e previsível e
que simultaneamente permitam aos médicos aprender com os erros e melhorar o
sistema de prestação de cuidados de saúde.