quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Acórdão do STJ de 18 de Março de 2010 - consentimento informado


Cumpre apreciar e decidir.
Os FACTOS são o que são, ou seja, são aqueles que as instâncias fixaram, maxime que o acórdão recorrido fixou e que, por comodidade de raciocínio, aqui transcrevemos por importação informática:
a) Em finais de Junho de 2003, a Autora começou a notar que a sua visão era desfocada, motivo pelo qual marcou, para o dia 02/07/2003, uma consulta na Clínica Ré, onde prestam serviços, como médicos oftalmologistas, os Réus BB e CC e a chamada DD, tendo, nesse dia, sido informada que possuía uma lesão no olho esquerdo, pelo que teria de realizar um exame denominado «angiografia f1uorsceínica».- al. A) e resp. quesitos 1º, 38º, 39º, 40º, 41º e 42ºda b. inst. ; 
b) Nessa consulta, a Autora foi atendida pela Chamada DD, que foi quem lhe prestou a informação aludida na al. a) e prescreveu a realização do exame aí mencionado. - ­resp. quesitos 2º, 32º, 38º, 39º,40º,41º e 42º da b. inst.; 
c) O exame de « angiografia f1uorsceínica » foi realizado no dia 08/07/2003, nas instalações da Clínica Ré, por uma técnica especializada, DrªEE, e o resultado desse exame foi observado pela Ré BB. - al. B) ; 
d) Na altura do exame referido na al. c), a Autora suspeitava que estava grávida, nada lhe tendo sido perguntado sobre se estava grávida. - resp. quesitos 3º e 47º da b. inst.; 
e) Após a realização desse exame, a Autora foi informada que o tratamento adequado para a cicatrização da lesão de que padecia seria uma pequena intervenção com o uso de laser, denominada «fotocoagulação laser», terapêutica essa que foi levada a efeito acto contínuo. - al. C) e resp. quesitos 38º, 39º,40º, 41º e 42º da b. inst.; 
f) A Autora questionou a possível existência de riscos de tal intervenção, tendo a Ré BB referido que tal intervenção com o uso de laser não importava quaisquer riscos, sendo que, ao invés, a Autora correria riscos sérios e graves se não fosse feita tal intervenção. - al. D) e resp. quesitos 38º, 39º, 40º, 41º e 42ºda b. inst. ; 
g) A informação aludida na al. e) foi prestada à Autora pela Chamada DD, que efectuou o tratamento aí referido, tendo informado, antes, a Autora da gravidade da lesão aí mencionada - resp. quesitos 5º, 32º, 38º, 39º, 40º, 41º e 42º da b. inst.; 
h) Não foi solicitado à Autora que assinasse termo de consentimento para a realização do referido tratamento. - al. E) ; 
i) A Autora realizou, então, o tratamento de fotocoagulação a laser focal no olho esquerdo, com vista a corrigir o problema de que nele padecia e que se tratava de cicatriz coriorretiniana supra nasal à mácula, com discreta difusão de corante na angiografia fluorceínica supra nasal à mácula e astigmatismo miópico composto. - al. F) ; 
j) No dia da consulta mencionada na al. a), em 02/07/2003, a acuidade visual do olho esquerdo da Autora era, com correcção, de 9/10, e, em 08/07/2003, antes da intervenção aludida na al. i), realizada nesse mesmo dia, a acuidade visual do olho esquerdo da Autora, com correcção, era de 8/10. - resp. Quesitos 9º e 43ºda b. inst. ; 
k) Após o tratamento mencionado na al. i), a Autora queixava-se de uma visão desfocada e distorcida. - resp. quesito 6ºda b. inst ; 
l) Posteriormente, a Autora foi observada na Clínica Ré pelo Réu CC, que procedeu a novo tratamento com raios laser no olho esquerdo, sem que lhe tenha sido solicitado que assinasse qualquer termo de consentimento para a realização do mesmo e sem que lhe tenham sido cobrados quaisquer honorários. - al. G) ; 
m) Aquela observação da Autora foi efectuada pelo Réu CC no dia 30/07/2003 - data em que a acuidade visual do olho esquerdo da Autora era, com correcção, de 10/10 ? -, o qual lhe marcou consulta para o dia 06/08/2003 - data em que essa acuidade visual, com correcção, era de 10/10 ?. -, sendo que, apresentando a Autora uma pequena baixa de visão do olho esquerdo, aquele Réu a informou que, pelo facto de a lesão de que a Autora padecia estar em evolução, teria de proceder, com urgência, àquele tratamento mencionado na al. l), que efectuou nesse mesmo dia 06/08/2003, com a concordância dela. - resp. quesitos 7º, 33º, 35º, 36º , 38º, 39º, 40º, 41º e 42º da b. inst.; 
n) Na consulta de 30/07/2003, apresentando o olho esquerdo da Autora edema retiniano junto a foco de corioretinite, foi-lhe receitada «Edolfene, colírio, 6 vezes por dia». - resp. quesito 34º da b. inst. ; 
o) No momento do tratamento mencionado na al. l), o Réu CC tinha conhecimento que a Autora suspeitava estar grávida, por esta última lho ter referido, não tendo colocado, no entanto, qualquer entrave à realização do mesmo. - resp. quesito 18º da b. inst. ; 
p) O tratamento aludido na al. i) permitiu manter estabilizada a lesão no olho esquerdo da Autora durante um mês. - resp. quesito 37º da b. inst. ; 
q) Após a intervenção com laser mencionada na aI. i), a Autora possuía, em 30/07/2003, uma acuidade visual do olho esquerdo, com correcção, de 10/10 ?, a qual, em 06/08/2008, era de 10/10?, e, após a intervenção com laser aludida na al. l), possuía, em 22/10/2003 - data em que teve lugar a última consulta na Clínica Ré -, uma acuidade visual do olho esquerdo, com correcção, de 4/10, sendo que, aquando do exame pericial aqui realizado, essa acuidade visual do olho esquerdo da Autora era de 2/10 ?, o que significa que houve uma perda da acuidade visual desse olho, com correcção, de 70% em relação à acuidade visual na data da consulta referida na al. a), padecendo a Autora, no total, de uma deficiência de visão no olho esquerdo de cerca de 90%, o que acarreta uma incapacidade permanente geral e visão distorcida e desfocada. - resp. quesitos 10º, 11º, 44º e 45º da b. inst.; 
r) Posteriormente aos tratamentos aludidos nas als. i) e l), a Autora foi submetida a três consultas na Clínica Ré, sendo que, na última, realizada em 22/10/2003, foi-lhe referido que, em caso de insucesso de tais tratamentos ou de agravamento da lesão, um dos tratamentos adequados seria a aplicação de uma injecção de corticosteróide. - resp. quesito 12º da b. inst. ; 
s) O tipo de intervenção laser a que a Autora foi submetida actua provocando a queimadura da retina, sendo certo que a lesão de que a Autora padecia no olho esquerdo se encontrava fora da «zona proibida» para aplicação do laser e que, atenta a distância dessa lesão à mácula, não era previsível o atingimento desta. - resp. quesitos 15º e 16º da b. inst.; 
t) A lesão no olho esquerdo da Autora não era de evolução previsível, tendo, sempre, um prognóstico reservado. - resp. quesitos 42º e 46º da b. inst. ; 
u) A Autora é inspectora tributária, profissão exigente ao nível da visão, que implica a análise e estudo diário de documentos, relatórios e contas, bem como o uso frequente do computador. - resp. quesito 22º da b. inst.; 
v) No exercício da sua actividade, a Autora conduz com regularidade. - resp. quesito 23ºda b. inst.;
w) A incapacidade visual de que a Autora padece, resultante de possuir uma acuidade visual do olho esquerdo, com correcção, de 2/10 ?, implica que a mesma tenha mais dificuldade em exercer as suas funções profissionais, sentindo-se limitada no exercício da sua profissão e ficando cansada e desgastada com mais facilidade e provocando-lhe um maior esforço do olho direito. - resp. quesitos 24º e 25º da b.inst.; 
x) A Autora padece de miopia no olho direito e usa uma lente de contacto nesse olho. - al. H) e resp. quesito 26º da b. inst. ; 
y) No caso de essa lente de contacto cair durante a condução, a acuidade visual da Autora fica reduzida à do olho esquerdo, obrigando esta a imobilizar o veículo. - resp. quesito 27ºda b. inst.; 
z) A acuidade visual, com correcção, de 2/10 ? que a Autora possui, actualmente, do olho esquerdo, limita-a na sua vida pessoal, causando-lhe tristeza, sofrimento, desgosto e quebra de auto-estima, vivendo a mesma momentos de pânico, por temer ficar cega. - resp. quesito 28º da b. inst.; 
aa) A Autora tem frequentes crises de choro e de ansiedade sempre que pensa que corre sérios riscos de ficar cega. - resp. quesito 29º da b. inst.; 
bb) A situação clínica do olho esquerdo da Autora pode vir a agravar-se com a idade, o que lhe causa medo e ansiedade. - resp. quesito 31º da b. inst.; 
cc) A Autora nasceu em 15/07/71. - al. I). 
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Sabemos que são as conclusões da alegação de recurso – deste como de qualquer recurso – que fixam o respectivo âmbito e objecto. Como vem sendo dito, uniforme e repetidamente, quer pela doutrina quer pela jurisprudência – ver, por exemplo, o Parecer de Calvão da Silva, CJ 1995, T 1, página 7 e Ac. STJ de 12 de Dezembro de 1995, BMJ nº452, pág.385.

Diremos então que têm razão os recorridos quando, contra – alegando, pretendem que este recurso incide apenas « sobre a eventual falta do consentimento informado, prévio aos tratamentos – que não intervenções cirúrgicas – a que a recorrente foi sujeita ».
E de tal forma vem esta questão autonomizada nas conclusões da alegação de recurso, que quase poderia dizer-se que a autora se apresenta com uma nova causa de pedir: aquilo que antes era o fundamento de um pedido indemnizatório formulado contra a ré – o (in)cumprimento da prestação de serviços médicos que os RR contratualmente assumiram, por um modo do qual resultaram para a autora danos, patrimoniais e não patrimoniais, que quantifica – desaparece para dar lugar agora a um pedido de indemnização com fundamento numa intervenção médica não consentida ( por não informada ), consequentemente arbitrária e ilícita.
Aquilo que na petição inicial era apenas instrumental ou residual no percurso fáctico da causa de pedir – a ausência de consentimento informado – é agora o único e exclusivo fundamento do pedido formulado.
O pedido já não é o da indemnização dos danos provocados por uma prestação médica fora dos meios a que os réus se obrigaram enquanto profissionais da medicina e que atingiu a integridade física da autora, mas antes aquele que vier a resultar de um outro dano – que só pode ser de natureza não patrimonial – que seja a ofensa à liberdade ou autonomia da mesma autora.
O que a autora pede agora estaria, assim, fora do objecto da acção e, portanto também, fora do objecto possível de recurso.
Seria uma questão inteiramente nova e de questões novas não poderia este Tribunal conhecer.
De qualquer modo – e porque se pode entender que, ao menos como instrumental ou residual, a questão vem conhecida pela Relação, no acórdão recorrido – perguntar-se-á:
consentiu ( ou não ) a autora no tratamento que lhe foi prestado na Clínica Oftalmológica ...-..., S.A.?
E, se consentiu, fê-lo ( ou não ) informadamente? Porque o consentimento só é válido, só pode julgar-se como validamente expresso, se for livre e esclarecido, logo se for informado. Se forem fornecidos ao doente – se foram fornecidos à autora – todos os elementos que a determinaram a consentir na intervenção médica que contratou com a Clínica ré e os seus médicos.
Não é despiciendo pensar, desde logo, que estamos num domínio inteiramente privado, em que a autora escolhelivremente a Clínica ré porque confia na qualidade dos seus médicos e dos seus serviços.
E esta livre escolha da autora induz, desde logo, uma tácita aceitação da orientação médica que na Clínica receba.
Alguém que escolhe previamente um determinado médico ou clínica privada porque confia nele, exigirá dele uma informação menos informada, passe o pleonasmo, predispondo-se a aceitar as indicações médicas que receba nos mesmos termos com o mesmo crédito de confiança com que firmou a sua escolha.
Ora bem:
a autora marcou, para o dia 02/07/2003, uma consulta na Clínica réonde foi atendida pela chamada Drª DD,
tendo, nesse dia, sido informada que possuía uma lesão no olho esquerdo, pelo que teria que realizar um exame denominado “angiografia fluorsceínica”,
exame esse que foi realizado no dia 08/07/2003, e cujo resultado foi observado pela ré Drª BB,
com a autora a ser informada pela chamada Drª DD da gravidade da lesão e de que o tratamento adequado para a cicatrização da lesão de que padecia seria uma pequena intervenção com uso de lazer, denominada “fotocoagulação laser”, terapêutica que foi levada a efeito acto contínuo por essa mesma Drª DD.
A Autora questionou a possível existência de riscos de tal intervenção, tendo a Ré BB referido que tal intervenção com o uso de laser não importava quaisquer riscos, sendo que, ao invés, a Autora correria riscos sérios e graves se não fosse feita tal intervenção.
Informada, então, da existência da lesão no olho esquerdo, a autora aceitou fazer o exame necessário à determinação rigorosa dessa mesma lesão, para definição do caminho médico a seguir perante ela.
E esta é, em nosso entender, informação suficiente para o doente que nos escolhe a menos que o exame tenha, em si mesmo, um especial risco, que justifique uma especial prevenção.
Assim mesmo o pretendia a autora porque – alegou – se encontrava grávida de algumas semanas « e o referido exame não é realizável em mulheres grávidas ».
Mas isso foi exactamente o que se não provou - a Autora suspeitava | apenas | que estava grávida, nada lhe tendo sido perguntado sobre se estava grávida e não se provou – resposta negativa ao ponto 4º da base instrutória – que este exame não é realizável em mulheres grávidas.
Não se provando o acrescido risco do exame, fica de fora do ónus da ré, dos réus, o acrescido dever de informar sobre um tal risco.
O exame confirmou a gravidade da lesão e a Autora foi informada | disso mesmo e de | que o tratamento adequado para a cicatrização da lesão de que padecia seria uma pequena intervenção com o uso de laser, denominada «fotocoagulação laser».
A Autora questionou a possível existência de riscos de tal intervenção, tendo a Ré BB referido que tal intervenção com o uso de laser não importava quaisquer riscos, sendo que, ao invés, a Autora correria riscos sérios e graves se não fosse feita tal intervenção.
Só depois, acto contínuo, essa terapêutica que foi levada a efeito.
Se a autora escolheu o seu médico, a sua clínica, é impensável aceitar a hipótese de não consentir no caminho terapêutico seguido.
Pois se por um lado temos a ausência de quaisquer riscos do tratamento e por outro temos riscos sérios e graves se a intervenção não fosse efectuada, qualquer razoável doente que previamente escolheu o seu médico – transportando nessa escolha, naturalmente, um capital de confiança – consentiria na realização do exame.
A menos que a intervenção a laser comportasse algum especial risco ( contra aquilo que foi afirmado pelo médico ), porque então sobre este incidiria o ónus da prova da informação à autora desse especial risco.
( Mas o que provou não foi isso. Foi que
a lesão de que a Autora padecia no olho esquerdo se encontrava fora da «zona proibida» para aplicação do laser e que, atenta a distância dessa lesão à mácula, não era previsível o atingimento desta ).
Ou que houvesse outros caminhos de intervenção/tratamento que à autora pudessem ter sido dados a conhecer, eventualmente mais adequados ou com melhores resultados previsíveis;
Ou que fosse perfeitamente indiferente, em termos de evolução da doença ou da sua regressão ou atalhar, fazer ou não fazer a fotocoagulação a laser.
Aí sim, sobre o médico – que não sobre o doente – incidiria o ónus de provar a informação necessária ao consentimento livre e esclarecido.
Mas não.
O que se provou foi apenas que a lesão no olho esquerdo da Autora não era de evolução previsível, tendo, sempre, um prognóstico reservado. 
Em conclusão: perante a gravidade de uma lesão cujo tratamento adequado seria a fotocoagulação a laser, a autora teve da parte do médico que escolheu a informação necessária ao consentimento livre ( e esclarecido ) que prestou – a lesão era grave e séria, de prognóstico reservado, exigindo uma intervenção imediata como forma mais adequada de atallhar a progressão da doença.
E, de facto, o método interventivo sugerido era o adequado naquelas circunstâncias, não correndo a autora ( previsivelmente ) riscos porquanto a lesão se encontrava fora da zona proibida de aplicação do laser.
Nas cirunstâncias concretas provadas o médico cumpriu o seu dever de informar - a intervenção era a adequada, sem riscos, e bem mais grave do que fazer a intervenção era o não fazer nada, deixando a doença evoluir por si.
Na distribuição das regras do ónus da prova entre o doente e o médico, no que ao dever de informar diz respeito, o médico veria naturalmente acrescido esse ónus se acaso a doente provasse por si própria – ónus seu – que outros caminhos havia possíveis ou mais adequados de tratamento/intervenção, ou que com ou sem intervenção/tratamento o resultado sempre proderia ser o mesmo – ou seja, que o não tratamento era potencialmente tão “eficaz” como o tratamento.

Ou que outros especiais riscos podia correr.
Mas a autora não fez prova, como pretendia, de que “os tratamentos a laser são desaconselhados em mulheres grávidas, atento o risco que acarretam para o feto” – resposta negativa ao ponto 19º da base instrutória.
Não tendo a autora feito a prova de um concreto acréscimo de possíbilidades perante a sua lesão que pudesse formar-lhe diferentemente o consentimento, que exprimiu, para o tratamento/intervenção – o que era ónus seu – não nasceu para os réus o dever acrescido de informação sobre todas essas e diferentes possibilidades – informação que seria ónus deles, dos médicos.
A informação fornecida – nos termos provados – foi, em concreto, a informação necessária, cumprindo os réus o ónus de informar.
Oralmente, é certo, mas o consentimento, a menos que a lei expressamente diga o contrário, pode ser prestado por qualquer forma – não necessita de ter a forma escrita.
D E C I S Ã O
Nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo da recorrente.
LISBOA,18 de Março de 2010
Pires da Rosa (Relator)
Custódio Montes
Alberto Sobrinho