sábado, agosto 06, 2016

Barrigas de aluguer: uma precipitação legislativa. O país em contraciclo


 Barrigas de aluguer: uma precipitação legislativa
O país em contraciclo

Fernanda Almeida – Juíza e Doutoranda em Direito
André Gonçalo Dias Pereira – Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Diretor do Centro de Direito Biomédico

A terceira alteração, recentemente aprovada, à Lei n.º 32/2006, de 26.7, veio tornar lícita no nosso país a maternidade ou gestação de substituição (GS), surgindo num momento em que a nível internacional e europeu se reclama uma harmonização de soluções ou mesmo a completa proibição de tais práticas.
O legislador nacional, não só não tomou em conta tal contexto global, como deixou em aberto, na regulamentação interna, inúmeras questões relevantes de pendor ético, constitucional e procedimental, como seja o de não permitir a renúncia da gestante substituta até, pelo menos, ao momento do parto.
Com tal desfasamento, potencia o aproveitamento da abertura legislativa em apreço por parte de cidadãos de países terceiros onde a GS seja proibida, podendo mesmo tornar o país num destino preferencial do chamado turismo procriativo.
Não deixa de ser inusitado o empenho e urgência legislativa na tomada de posição sobre matéria tão complexa, omitindo-se aspetos essenciais, abrindo a porta a despesas públicas de vulto para debelar um problema de saúde com contornos éticos e jurídicos discutíveis, num momento em que a crise financeira do país motiva cortes orçamentais dramáticos no setor básico em questão.
Depois de largos anos de discussão nacional sobre o assunto, de consulta de inúmeras instituições e peritos, de vetos presidenciais e tratando-se de matéria tão sensível, era exigível que o legislador tivesse estabelecido exaustivamente e com rigor as condições de acesso e execução da GS.
Essa preocupação foi sendo previamente demonstrada em vários setores científicos, desde logo os relativos ao direito, mas também à medicina, como resulta inequívoco dos pareceres que precederam a análise e discussão dos projetos de lei.
O procedimento do legislador acabou por se demonstrar evasivo em áreas de regulação legal que envolvem posições ético-filosóficas, morais, religiosas e jurídicas díspares, a ponto de alguns apelidarem a alteração em curso de um “retrocesso civilizacional”, pois coloca em grave vulnerabilidade o estatuto das mulheres “gestantes” e das crianças nascidas por este processo. Por outro lado, algumas lacunas da lei constituem motivo de preocupação, porque deixa aos juízes a decisão casuística em segmentos da vida social de sensível significado ético-político.
A diversidade de pontos de vista entre a ciência, a ética e o direito foi oportunamente realçada pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no Relatório/Parecer sobre reprodução medicamente assistida (3/CNE/93), onde se reconhece que “nem tudo o que é tecnicamente possível é necessariamente desejável para a vida e para a dignidade humana”.
Também no Relatório/ Parecer 87/CNECV/2016, de março de 2016, se deixou vincado que estar a decisão sobre as técnicas de reprodução humana subordinada ao primado do ser humano (...) e aos direitos do/a filho/a à sua identidade pessoal, ao conhecimento das suas origens parentais.
O Parlamento Europeu, pela Resolução 2015/2229, de 17.12.2015, condenou a prática de gestação para outrem e, já no corrente ano, solicitou à Comissão Europeia que defina uma proteção jurídica a nível da União para os indivíduos, atuais e futuros, nascidos com recurso a maternidade de substituição e verifique se a legislação relativa à maternidade de substituição em vigor nos Estados-Membros onde esta é autorizada é compatível com a legislação da UE em matéria de proteção dos direitos da mulher e da criança.
De um ponto de vista dos direitos humanos, pode mesmo entender-se ser desejável proibir a GS internacional, de modo a que os beneficiários não tomem decisões com base na previsibilidade de gastos que possam ter neste ou naquele país e se diminua o risco de exploração de mulheres em países de condições financeiras desfavorecidas. Olhando para o nosso entorno, se até agora os casais espanhóis recorriam, na sua maioria, aos Estados Unidos, Tailândia, México e, mais recentemente, Grécia, não será surpresa que Portugal se torne rumo de turismo espanhol por razões de reprodução, se a aplicação da lei aprovada não for devidamente fiscalizada e monitorizada.
Dentre as omissões mais significativas, destacamos que, nas alterações legislativas agora levadas a cabo, não se estabeleceram idades mínimas e máximas para os pais de intenção ou para a mulher que fornece o útero; quando e como esta entrega a criança aos beneficiários; o que fazer, se se recusar a entregá-la; quem é pai e mãe se o contrato for nulo; se o contrato pode ser resolvido; como se estabelece a filiação se algum dos intervenientes sofrer de anomalia psíquica não detetada; se o “casal beneficiário” pode obrigar a gestante a submeter-se a diagnóstico pré-natal; se lhes é lícito obrigá-la a abortar, até às 24 semanas, caso a criança sofra de grave doença ou malformação congénita, nos termos previstos na lei da IVG. Também não estabeleceu qualquer limitação de nacionalidade dos beneficiários (como se fez na Índia depois do famoso caso Gammy baby), o que pode potenciar o país como destino do referido turismo procriativo. Parece-nos, ainda, que a lei aprovada não pode pôr em causa o princípio da livre revogabilidade do consentimento da gestante de substituição, como resulta da regra geral de proteção dos direitos de personalidade (art. 81.º, n.º 2 do Código Civil), sendo, ainda, de considerar a possibilidade de aplicação analógica do art. 1982.º, n.º3, do Código Civil (a mãe que pretende dar o filho para adoção só prestará consentimento decorridas seis semanas após o parto).
Negar este caminho interpretativo, significaria transformar o corpo (o útero) da mulher num objeto que permite a prestação de serviços, que culminam com a obrigação de entrega da criança... qual Agar, a escrava de Abraão e de Sara... Sublinhamos, a escrava...
Dirão os otimistas que isso não visa a lei, pois haverá mulheres “amigas” e altruístas, quiçá mesmo familiares que contribuirão para o sucesso desta técnica de PMA. Oxalá!
Criança que, no extremo, se não for absolutamente cumprida a lei, pode ter seis pais: a dadora do ovócito, o dador de espermatozoide, a “dadora” do útero, os pais sociais (que a criança reconhecerá como pai e mãe) e o pai presumido, o marido da gestante, se esta for casada. Pluralidade que, em si, não merece uma censura radical. Contudo, criança à qual não foi ainda reconhecido pela lei um efetivo direito à sua identidade pessoal, incluindo o direito à sua história pessoal, como parece exigir o artigo 26.º da Constituição.

Compreendemos a vontade política de permitir que alguns casais inférteis  tenham acesso a esta técnica de PMA. O desejo e a ambição da parentalidade é estimável e louvável. Mas, temos fundadas dúvidas que o teor da lei agora aprovada na Assembleia da República não cause prejuízos graves a mulheres e a crianças concretas e que cause uma fratura grave na imagem que a sociedade tem ou devia ter do corpo da mulher.