Barrigas de aluguer: uma
precipitação legislativa
O país em
contraciclo
Fernanda
Almeida – Juíza e Doutoranda em Direito
André
Gonçalo Dias Pereira – Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra; Diretor do Centro de Direito Biomédico
A
terceira alteração, recentemente aprovada, à Lei n.º 32/2006, de 26.7, veio
tornar lícita no nosso país a maternidade ou gestação de substituição (GS),
surgindo num momento em que a nível internacional e europeu se reclama uma
harmonização de soluções ou mesmo a completa proibição de tais práticas.
O
legislador nacional, não só não tomou em conta tal contexto global, como deixou
em aberto, na regulamentação interna, inúmeras questões relevantes de pendor
ético, constitucional e procedimental, como seja o de não permitir a renúncia
da gestante substituta até, pelo menos, ao momento do parto.
Com
tal desfasamento, potencia o aproveitamento da abertura legislativa em apreço
por parte de cidadãos de países terceiros onde a GS seja proibida, podendo
mesmo tornar o país num destino preferencial do chamado turismo procriativo.
Não
deixa de ser inusitado o empenho e urgência legislativa na tomada de posição
sobre matéria tão complexa, omitindo-se aspetos essenciais, abrindo a porta a
despesas públicas de vulto para debelar um problema de saúde com contornos
éticos e jurídicos discutíveis, num momento em que a crise financeira do país
motiva cortes orçamentais dramáticos no setor básico em questão.
Depois
de largos anos de discussão nacional sobre o assunto, de consulta de inúmeras
instituições e peritos, de vetos presidenciais e tratando-se de matéria tão
sensível, era exigível que o legislador tivesse estabelecido exaustivamente e
com rigor as condições de acesso e execução da GS.
Essa
preocupação foi sendo previamente demonstrada em vários setores científicos,
desde logo os relativos ao direito, mas também à medicina, como resulta
inequívoco dos pareceres que precederam a análise e discussão dos projetos de
lei.
O
procedimento do legislador acabou por se demonstrar evasivo em áreas de
regulação legal que envolvem posições ético-filosóficas, morais, religiosas e
jurídicas díspares, a ponto de alguns apelidarem a alteração em curso de um
“retrocesso civilizacional”, pois coloca em grave vulnerabilidade o estatuto
das mulheres “gestantes” e das crianças nascidas por este processo. Por outro
lado, algumas lacunas da lei constituem motivo de preocupação, porque deixa aos
juízes a decisão casuística em segmentos da vida social de sensível significado
ético-político.
A
diversidade de pontos de vista entre a ciência, a ética e o direito foi oportunamente
realçada pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no Relatório/Parecer
sobre reprodução medicamente assistida (3/CNE/93), onde se reconhece que “nem tudo
o que é tecnicamente possível é necessariamente desejável para a vida e para a
dignidade humana”.
Também
no Relatório/ Parecer 87/CNECV/2016, de março de 2016, se deixou vincado que
estar a decisão sobre as técnicas de reprodução humana subordinada ao
primado do ser humano (...) e aos direitos do/a filho/a à sua identidade
pessoal, ao conhecimento das suas origens parentais.
O
Parlamento Europeu, pela Resolução 2015/2229, de 17.12.2015, condenou a prática
de gestação para outrem e, já no corrente ano, solicitou à Comissão Europeia
que defina uma proteção jurídica a nível da União para os indivíduos, atuais e
futuros, nascidos com recurso a maternidade de substituição e verifique se a
legislação relativa à maternidade de substituição em vigor nos Estados-Membros onde
esta é autorizada é compatível com a legislação da UE em matéria de proteção
dos direitos da mulher e da criança.
De
um ponto de vista dos direitos humanos, pode mesmo entender-se ser desejável
proibir a GS internacional, de modo a que os beneficiários não tomem decisões
com base na previsibilidade de gastos que possam ter neste ou naquele país e se
diminua o risco de exploração de mulheres em países de condições financeiras
desfavorecidas. Olhando para o nosso entorno, se até agora os casais espanhóis
recorriam, na sua maioria, aos Estados Unidos, Tailândia, México e, mais
recentemente, Grécia, não será surpresa que Portugal se torne rumo de turismo
espanhol por razões de reprodução, se a aplicação da lei aprovada não for
devidamente fiscalizada e monitorizada.
Dentre
as omissões mais significativas, destacamos que, nas alterações legislativas
agora levadas a cabo, não se estabeleceram idades mínimas e máximas para os
pais de intenção ou para a mulher que fornece o útero; quando e como esta
entrega a criança aos beneficiários; o que fazer, se se recusar a entregá-la;
quem é pai e mãe se o contrato for nulo; se o contrato pode ser resolvido; como
se estabelece a filiação se algum dos intervenientes sofrer de anomalia
psíquica não detetada; se o “casal beneficiário” pode obrigar a gestante a
submeter-se a diagnóstico pré-natal; se lhes é lícito obrigá-la a abortar, até
às 24 semanas, caso a criança sofra de grave doença ou malformação congénita,
nos termos previstos na lei da IVG. Também não estabeleceu qualquer limitação
de nacionalidade dos beneficiários (como se fez na Índia depois do famoso caso Gammy
baby), o que pode potenciar o país como destino do referido turismo
procriativo. Parece-nos, ainda, que a lei aprovada não pode pôr em causa o
princípio da livre revogabilidade do
consentimento da gestante de substituição, como resulta da regra geral de proteção
dos direitos de personalidade (art. 81.º, n.º 2 do Código Civil), sendo, ainda,
de considerar a possibilidade de aplicação analógica do art. 1982.º, n.º3, do
Código Civil (a mãe que pretende dar o filho para adoção só prestará consentimento
decorridas seis semanas após o parto).
Negar
este caminho interpretativo, significaria transformar o corpo (o útero) da
mulher num objeto que permite a prestação de serviços, que culminam com a obrigação
de entrega da criança... qual Agar, a escrava
de Abraão e de Sara... Sublinhamos, a escrava...
Dirão
os otimistas que isso não visa a lei,
pois haverá mulheres “amigas” e altruístas, quiçá mesmo familiares que
contribuirão para o sucesso desta técnica de PMA. Oxalá!
Criança
que, no extremo, se não for absolutamente cumprida a lei, pode ter seis pais: a dadora do ovócito, o dador
de espermatozoide, a “dadora” do útero, os pais sociais (que a criança
reconhecerá como pai e mãe) e o pai presumido, o marido da gestante, se
esta for casada. Pluralidade
que, em si, não merece uma censura radical. Contudo, criança à qual não
foi ainda reconhecido pela lei um efetivo direito à sua identidade pessoal,
incluindo o direito à sua história pessoal, como parece exigir o artigo 26.º da
Constituição.
Compreendemos
a vontade política de permitir que alguns casais inférteis tenham acesso a esta técnica de PMA. O desejo
e a ambição da parentalidade é estimável e louvável. Mas, temos fundadas
dúvidas que o teor da lei agora aprovada na Assembleia da República não cause
prejuízos graves a mulheres e a crianças concretas e que cause uma fratura
grave na imagem que a sociedade tem ou devia ter do corpo da mulher.