1. A maldade camuflada: unicidade comunicativa
Se outro mérito não tivesse a campanha presidencial de Mário Soares – e como demonstraremos tem muitos, embora alguns teimem em ver nela apenas maldades – um deles salta à vista dos observadores independentes: o de fazer eco de indignado espanto perante a parcialidade dos meios de comunicação. O exemplo mais escandaloso está bem perto de nós. No dia de abertura da campanha, quando todos esperávamos assistir pela televisão a um momento robusto, desinibido e plural do desenvolvimento da vontade popular, nada mais conseguirmos do que ver, na hora nobre das oito, o mesmo rosto, os mesmos dizeres, os mesmos símbolos, em todos os canais. É claro que os donos públicos e privados das estações emissoras chamam a isto liberdade de programação televisiva.
Nós registaremos o vício congénito e daremos um nome ao fenómeno: unicidade comunicativa. Não se trata, como é óbvio, de censurar a comunicação livre nem o trabalho árduo destas jornalistas e destes jornalistas que acompanham os candidatos pelos caminhos de Portugal. Procura-se, sim, alertar para a viciação das regras do jogo eleitoral: a liberdade e igualdade de todos os candidatos a Presidente.
2. As propostas dos candidatos
2.1. Os antipolíticos e os antipartidos
Se a livre e diversa expressão de ideias e a pluralidade de propostas dos candidatos se defronta com o manto diáfano da escolha – designação antecipada de um candidato – parece-nos avisado, aqui e agora, fazer perante vós algumas suspensões reflexivas à guisa de balanço da pré-campanha e da primeira de campanha.
Desde a primeira hora, o candidato Mário Soares tornou bem claro que qualquer discussão sobre o Estado, a República e a Nação – e os candidatos a Presidente da República podem e devem falar sobre estes temas cheios de “política – deveriam partir de um pressuposto incontornável – evitar a lenga-lenga do “desencanto”, da “des-esperança”, do nihilismo. Isto significa que, hoje como ontem, quem afivela de cara aberta ou com máscaras de disfarce, a profissão de político deve contribuir para a reabilitação dos que cuidam, nem sempre bem aceitemos da coisa pública e da liberdade igual para todos os portugueses. Sabemos todos que o “estudo de alma” de grande número de concidadãos é o inverso do que se propõe: desconfiança perante os políticos, indiferença em relação à política, desconhecimento dos grandes momentos políticos. Devemos reabilitar o político, a política e os políticos. Na nossa história recente, só por ironia ou por suspeito esquecimento, é que não fixamos as datas políticas: o 25 de Abril, à adesão à Comunidade Europeia, o aprofundamento da integração europeia com a criação do Euro, tudo são momentos de manifestações de vontade política para vencer as crises. Mário Soares esteve em todos os momentos. Mais do que isso: teve a coragem de protagonizar as mudanças e as rupturas. Porquê então explorar o filão obscurantista da maldade nunca expiada dos políticos, do integracionismo anti-democrático dos antipartidos, da missão salvífica homens providenciais?
3. Os poderes do Presidente
Os debates da pré-campanha e da campanha parecem revelar quase todos os candidatos – excepto Mário Soares – querem um Presidente da República mais activo, mais interventivo, mais presidencialista, mais governativo. O modo como o fazem – deve reconhecer-se – é diferente de uns para os outros.
Uns entendem que o Presidente da República tem pecado por defeito na salvaguarda dos princípios da igualdade, da solidariedade e dos direitos dos trabalhadores. Exigem de um Presidente da República aquilo que ele não lhes pode dar por dar respeito à Constituição: uma agenda de governo presidencial socialmente conformadora. Devemos ter serenidade bastante para entender que o Presidente da República não se pode nem deve transformar em “força de bloqueio” das propostas dos governos legitimamente eleitos. Outros ensaiam uma retórica poética errática, conservadoramente patriótica e perigosamente antipartidária para dar e nervo à criação artística de um cidadão-presidente. Outros convocam um cavaqueio sofridamente postiço da desesperança para inocular a necessidade de restauração de Portugal. A nossa Pátria teria tido uma época de ouro – os dez anos de governo do próprio candidato – e, a partir daí, entrou na decadência. Se, outrora, eles pretendiam um Presidente, um Governo e uma maioria para alaranjar o país, hoje, à míngua de governo e de maioria, depositam as esperanças num Presidente que governe, que imponha um caderno de encargos ao Primeiro-Ministro, que marca a cadência, o tom e os dom das políticas públicas, que vete e ameace, numa palavra, que prepare a concentração nunca permitida pelo povo português de um presidente, uma maioria e um governo à direita. Uma nebulosa de “compromisso Portugal”, de “Portugal velho”, de neo-liberalismo e de estatalismo-corporativista sugere um modelo de presidente quase presidencial ou procura reinventar o semi-presidencialismo de governos presidenciais. É claro que se procura sempre colocar Portugal na marcha do progresso. Mas que Portugal é esse que teria proporcionado a todos os portugueses a abundância, quase o paraíso na terra? O Portugal sem rendimento mínimo de inserção em que o desemprego colocava no limiar da pobreza famílias inteiras – do avô ao neto – porque desaparece a fábrica, o estaleiro, a empresa onde tinham trabalho? O Portugal sem a agenda de Lisboa a colocar a inovação e o conhecimento como estratégia indispensável ao desenvolvimento sustentado? O Portugal da compra de reformas e de reformas antecipadas que numa cegueira de prognose económica coloca agora a maioria dos portugueses a terem de trabalhar mais anos? O Portugal das forças de bloqueio que imaginava conspirações contra o Governo do Tribunal de Contas, do Tribunal Constitucional e do próprio Presidente da República?
Mas mesmo que o Candidato derrotado há dez anos tenha hoje outra visão dos portugueses, continuamos perante o grande enigma desta campanha: como é que um homem, sozinho, com as competências limitadas que a Constituição lhe confere consegue fazer o milagre de obter investimentos directos, garantir o futuro dos bisnetos, colocar os portugueses no primeiro lugar do conhecimento, elevar a competitividade das nossas empresas, criar, no fundo, a ilusão de que somos candidatos ao título de campeões do mundo?
Perante este panorama, compreende-se que o Doutor Mário Soares tenha deixado a sua tranquilidade, a sua reformada qualidade de Pai da Pátria. Que nos propõe ele?
4. Presidente Constitucional
De uma forma ou de outra, todos os candidatos a presidente, excepto Mário Soares, têm uma visão distorcida e maximalista dos poderes e competências do Presidente da República. É certo que os motivos que os levam a defender uma intervenção alargada não são os mesmos. De um lado, está o propósito confessado ou inconfessado de um projecto hegemónico da direita para os próximos vinte anos. Este projecto oculta-se em fórmulas pseudo-patrióticas (“Portugal pode vencer”, “Portugal não pode resignar-se”). Do outro lado, estão leituras interessadas em elevar o Presidente da República a alavanca de todo o sistema constitucional: para vetar as leis do trabalho, para vigiar o serviço nacional de saúde, para impedir a deslocalização de empresas, para perseguir os responsáveis de fraudes fiscais.
De um lado estão os que insistem no bloqueio da Constituição ao desenvolvimento para insinuarem a bondade das constituições que não proíbem despedimentos sem justa causa ou por motivos ideológicos, que não garantem um sistema público e republicano de ensino, que não consagram serviço nacional de saúde, que são indiferentes ao sistema público de segurança social, que se abrem ao não pagamento de impostos, aos “off-shores”, aos paraísos fiscais. Numa palavra, os que querem crescimento sem socialidade e solidariedade. Do outro, encontram-se os que, embora empenhados no desenvolvimento do Estado-Social, pretendem conquistar posições no aparelho de Estado para prosseguirem a sua legítima luta político-partidária a pretexto de eleições presidencais.
No meio de toda esta agitação ergue-se a figura do nosso candidato. Que foi e pretende voltar a ser apenas e sobretudo o Presidente da República com os poderes e competências previstos na Constituição da República. Que foi e pretende voltar a ser o Presidente de todos os portugueses, desde o urbano ao rural, do trabalhador ao empresário, do sindicalista ao dirigente de associação industrial ou comercial, dos jovens à terceira idade, dos nacionais aos estrangeiros que procuram o nosso país para dignificar a existência. Mas não só. Ele sabe por experiência própria que o povo português aprecia os políticos que tanto se sentem à vontade no meio humilde e laborioso das peixeiras como no mundo dos intelectuais e da cultura. Mais ainda: num país ainda influenciado pelos filhos e netos do “orgulhosamente só”, ele sabe que Portugal isolado é um país desarmado, não havendo outra estratégia possível que não seja a da Europa e do Mundo.
Mário Soares sabe mais ainda. Ele não é apenas o presente do passado. É o presente do futuro.
Ele sabe que exercer o cargo de Presidente da República nos começos de um novo milénio não significa copiar a papel químico os seus dois notáveis mandatos anteriores. O texto constitucional é o mesmo, mas o mundo mudou profundamente. É neste contexto de mudança que Mário Soares revela a sua excepcional clarividência como político. Mais do que todos os outros e de qualquer um de nós dispõe de intuição e de coragem para compreender o rumo das coisas. Sabe ver para onde o mundo caminha. Ele será o primeiro:
a) a propugnar pelos direitos das gerações futuras, insistindo nos termos da agenda de Lisboa – inovação, conhecimento e investigação – que recorde-se foi posta no mapa da Europa devido à inteligência de António Guterres em substituição do crescimento do betão.
Em termos mais simples para todos compreenderem: os nossos filhos, netos e bisnetos não encontrarão emprego em fábricas de calçado, em universidades rotineiras e burocráticas, em hospitais falhos de excelência e de humanidade, mas em muitos Critical Softwares, em muitos laboratórios de excelência, em muitas unidades hospitalares pautadas pela boa governação;
b) a defender o aprofundamento da União Europeia – e se necessário tornar ele próprio iniciativas nesse sentido – porque só quem não quer ver é que não compreende que o velho continente é o novo continente da paz, da tolerância, do diálogo e do desenvolvimento;
c) insistir no reforço da plataforma de encontro de todos os povos e de todos os Estados e de todas as comunidades onde Portugal esteve ou está: das Comunidades dos Países de Língua Portuguesa e das Comunidades Portuguesas;
d) lutar pela igualdade real entre os portugueses, estando atento ao crescente desequilíbrio entre pobres e ricos, entre urbanos e rurais, entre gentes do interior e gentes do litoral, entre pessoas de sucesso e excluídos da sorte, entre nacionais e estrangeiros, promovendo os ideais da solidariedade e da inclusividade;
e) garantir as condições políticas e sociais, de estabilidade e diálogo, para atrair investimentos directos estrangeiros e apoiar governo e empresários na dinamização do tecido empresarial, no investimento e formação profissional, no incremento das políticas de emprego;
f) assumir decisivo papel no estímulo da modernização do Estado, apelando para a indispensabilidade de os governantes prestarem contas aos portugueses, assumirem as suas responsabilidades e serem avaliados pelo seu desempenho;
g) combater as doenças corrosivas da democracia: o clientelismo, a corrupção, o negocialismo de Estado.