Servidões Prediais e Obrigações propter rem[1]
André Gonçalo Dias Pereira[2]
Sumário:1. O princípio da tipicidade dos direitos reais. 2. Onumerus clausus dos direitos reais (art. 1306.º do Código Civil). 3. Noção de servidão predial (art. 1543.º do Código Civil): a) Inadmissibilidade de servidões em benefício de pessoas; b) Inadmissibilidade de servidões que se traduzam num encargo de conteúdo positivo imposto ao proprietário de um prédio (Servitusin faciendo consistere nequit). 4. Conceito de obrigação real, propter remou ob rem: i) O princípio da taxatividade das obrigações reais. 5. A servidão predial como tipo aberto. 6. A possibilidade de desenvolvimento dos direitos reais com base na figura das servidões prediais voluntárias. Exemplos: a) Servidões de fruição; b) Servidões de não concorrência; c) Servidões de indústria; d) Servitus altius non tollendi; e) Servidões que imponham um determinado estilo arquitectónico. 7. Conclusão: autonomia privada e direitos reais.
1. O princípio da tipicidade dos Direito Reais
A teoria do tipo ocupa um lugar importante no pensamento jurídico[3]. LARENZ propõe esta teoria em consequência da distinção hegeliana entre conceito abstracto e conceito concreto.[4]O conceito concreto seria aquele a que recorreria o Direito, e antecedente directo da noção de tipo. O tipo consiste em algo de mais abstracto do que a realidade, mas menos abstracto do que o conceito. Podemos aproximar – seguindo a distinção de RADBRUCH – o tipo do conceito de ordem (Ordnungsbegriff), por contraposição ao conceito de classe (Klassenbegriff), na terminologia de RADBRUCH. Este seria aquele que dividiria toda a realidade, tudo classificando como incluído ou excluído. Pelo contrário, o tipo é um conceito que não divide a realidade, esta pode apenas ser referida a este.[5]
Há vários ramos do direito em que a lei recorre a tipos; assim acontece no Direito Penal, no Direito Tributário e, quanto ao Direito privado, nos regimes de bens no casamento, nas sociedades comerciais e nos direitos reais, por exemplo.
Com efeito, um dos princípios dos direitos reais é o princípio da tipicidade, que resulta da naturalmente da eficácia erga omnes dos direitos reais: sendo direitos absolutos interessa que possam ser conhecidos e intuitíveis pelos outros membros da comunidade jurídica e que sejam facilmente compreendidos por leigos, isto é, por não juristas.[6]
Este princípio consiste “na tendência dos direitos das coisas para se oferecerem em tipos característicos, aproveitando o Direito as formações mais ou menos consagradas pelos usos (“tipos correntes”), ou, sempre que busca reagir contra esses usos ou propor novos modelos sócio-económicos, criando, ele mesmo, de harmonia com tais fins, os “protótipos” ou os “tipos normativos” que lhe interessem.”[7]
2. O numerus clausus dos direitos reais (art. 1306.º do Código Civil)
Entre nós, essa tipicidade é taxativa, vigorando o princípio do numerus clausus: o direito das coisas tende, não apenas a oferecer-se em tipos característicos, mas a oferecer-se numa “tipologia taxativa” (Oliveira Ascensão), num elenco fechado de formas ou de direitos, como resulta do art. 1306.º do Código Civil.
Todavia, a taxatividade em direitos reais não é tão rígida quanto nos referidos ramos de direito público. E isso deve-se ao facto de encontrarmos no direito das coisas tipos abertos.
Com efeito, a lei impede a constituição com força real de figuras diferentes das previstas, quais sejam (ao nível dos direitos de gozo): o usufruto, uso e habitação, a superfície, o direito de habitação periódica e as servidões. Mas o conteúdo destes direitos está mais ou menos aberto à liberdade contratual das partes, revelando-se surpreendentemente amplo na servidão. Nas palavras de ORLANDO DE CARVALHO, "a intervenção modeladora da vontade das partes é aqui, não apenas lícita, mas esperada pela lei".[8]
Explorando os contornos do tipo legal da servidão se poderá permitir o desenvolvimento prático de figuras jurídico-reais com interesse prático e que satisfaçam necessidades económicas ou outras do mundo da vida. É este o objectivo desta intervenção.
3. Noção de servidão predial (art. 1543.º do Código Civil)
No direito romano clássico vigorava o princípio da taxatividade das servidões, sendo apenas admitidas o iter, o actus, a viae o acquaeductus, mas esse princípio foi abandonado na época justinianeia.[9]
No direito português actual, as Servidões Prediais estão previstas no Livro III do Código Civil, sendo definidas, no art. 1543.º, como "o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia".
Assim, o direito português aceita claramente o princípio da atipicidade do conteúdo das servidões.[10]Esta atipicidade é característica dos direitos modernos podendo ser encontrado,v.g., no direito italiano (arts. 1027 e 1028 do Codice Civile)[11], alemão (§1018 BGB)[12]e francês (art. 637 do CodeCivil).[13]
Importa deste modo compreender os limites da liberdade negocial dos particulares no direito real de servidão.
São quatro as notas caracterizadoras deste direito real: a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; c) eaproveitaexclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes.
O conteúdoda servidão pode ser qualquer utilidade susceptível de ser gozada através do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.[14]
A lei portuguesa, ao contrário de outras[15], é muito ampla na sua formulação. Tratou-se de uma opção clara de Pires de Lima, autor do anteprojecto da matéria das servidões. "O carácter atípico desta figura é hoje admitido em todos os países (…) os códigos modernos regulam-nas (as servidões) genericamente, e tudo o que seja limitar, por conceitos ou especificações, o seu conteúdo, pode trazer consequências não desejadas em relação a uma ou outra possível figura".[16]
O limite está na nota da predialidade[17]: a utilidade proporcionada pela servidão deve ser gozada pelo seu titular através do prédio dominante. Traça-se aqui a importante fronteira entre as servidões prediais e as servidões pessoais ou irregulares, que corresponde à fronteira entre os direitos reais e os direitos obrigacionais.
4. A Servidão Predial como tipo aberto
a. Inadmissibilidade das servidões pessoais
Da noção de servidão resulta claramente a rejeição, entre nós e na esteira da codificação napoleónica, das servidões pessoais com eficácia erga omnes.[18]
Com as revoluções liberais procurou-se abolir todas as limitações de raiz feudal à propriedade fundiária. Comporti assinala a importância do espírito da Revolução Francesa, do iluminismo e do direito natural no entendimento moderno do direito de propriedade. Escreve o autor italiano: “A nova concepção de propriedade como direito natural do indivíduo, incindivelmente ligado à sua personalidade e à sua liberdade, comportava a libertação dos infinitos ónus, vínculos e pesos pessoais e reais caracterizadores da anterior complexa teia feudal e conduziu à rígida limitação dos iura in re aliena, com vista a evitar lesões ao direito soberano, através do princípio donumerus clausus.”[19]
“A burguesia, classe triunfante da revolução, viu nas doutrinas racionalistas uma “oportunidade dourada” – sob pretexto de tornar coerente o sistema real, libertou a terra dos antigos vínculos, de que a nobreza fora a grande beneficiária. Estava aberta a porta para a exploração da terra com vista ao lucro.”[20]
Esta a raiz histórica deste elemento caracterizador do tipo: o encargo é imposto em proveito de outro prédio e não em proveito de outra pessoa. Assim as "servidões pessoais" ou preenchem os requisitos típicos dos institutos do usufruto, uso e habitação ou revestem pura natureza obrigacional (enquanto direitos pessoais de gozo), nos termos do art. 1306º CC.
É pois muito importante compreender a fronteira entre as servidões pessoais e as servidões prediais, que é no fundo a linha divisória entre os direitos reais e o direito de crédito.
(1) Imagine-se que Aquer investir num Hotel para caçadores no Alentejo, na sua propriedade X. Pretende proporcionar aos seus clientes uma extensa área para caçar. Celebra com B, proprietário do prédio vizinho Y, uma herdade com vários hectares, um contrato, que sujeitaram a escritura pública, nos termos do qual: “o prédio Yfica onerado a favor do prédio X, na medida em que os clientes do futuro Hotel[21]que aí vai ser instalado possam caçar pelo prazo de 30 anos nesse mesmo prédio Y. Em contrapartida Apagará a B€ 10.000 por ano.”
As partes pretendem atribuir eficácia real a este direito e, visto tratar-se de uma servidão não aparente, Apretende proceder à sua inscrição no Registo.[22]O Conservador do Registo Predial deve admitir esta inscrição, com base no art. 2.º, n.º 1, al. a) do Código do Registo Predial. Com efeito, estamos aqui perante um verdadeiro direito real de servidão, já que essa utilidade (a faculdade de caçar no prédio vizinho) está adstrita ao aproveitamento do prédio dominante.[23][24]
(2) Pelo contrário, se o “direito de caçar” fosse atribuído a A, sem qualquer ligação ao prédio, já não poderia ter eficácia real, sendo um mero direito obrigacional, com eficácia inter partes, tratar-se-ia de uma servidão pessoal.
Como afirma Comporti: “O fundamento objectivo e real da “utilitas” constitui elemento fundamental para distinguir a servidão da obrigação. De facto, para se configurar uma servidão predial e a validade da sua constituição é necessário que a vantagem prevista para a parte exista em relação à situação objectiva dos prédios interessados, como utilidade que o prédio serviente seja susceptível de oferecer ao prédio dominante (em relação às actuais ou previsíveis destinações futuras do mesmo), e não se revele, pelo contrário, uma vantagem subjectiva e extrínseca relativa à actividade pessoal do proprietário do prédio dominante.”[25]
b. (Servitusin faciendo consistere nequit)
A servidão é um encargo, restrição ou limitação, configurando, portanto, um ius in re alienae não já, um fraccionamento do domínio, como acontecia no primitivo direito romano. O proprietário do prédio sobre que recai o encargo fica inibido de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão, só deve ter um comportamento passivo, não se confundindo com o modus, que consiste normalmente numa prestação (de carácter pessoal) imposta ao donatário, herdeiro ou legatário.
Já no direito romano, a servidão não podia consistir num facere(servitus in faciendo consistere nequit): o proprietário do fundusserviente só deve ter um comportamento passivo. Deve tolerar (pati) que o proprietário do fundusdominante realize determinadas actividades no fundusserviente ou abster-se (non facere) de realizar certas actividades no seu fundus. Esta situação viria a alterar-se com o feudalismo da Idade Média.[26]
O princípio “Servitus in faciendo consistere nequit” teve o seu grande momento de exaltação na época do Código de Napoleão. Visava-se abolir todas as prestações de carácter pessoal, de clara inspiração medieval, devidas pelo proprietário do prédio serviente.[27]No direito italiano hodierno, “igualmente, não seriam configuráveis como servidão (mas como obrigação não oponível ao futuro adquirente) um pacto pelo qual a utilidade a favor do prédio dominante seja alcançada através de um faceredo proprietário do prédio serviente, caso contrário falharia o carácter de objectividade como expressão duradoura da sujeição de um prédio ao outro.”[28]
(3) Tomemos a hipótese de Cpretender realizar uma exploração agro-pecuária “ecológica” no seu terreno W. Para tanto pretende que os seus animais possam comer erva dos prédios vizinhos. Ccontrata com Do direito de os animais que cria no seu prédio W vão pastar no prédio Z, pertencente a D, pelo prazo de 20 anos.
(4) Já com E, proprietário do prédio rústico S, localizado numa zona de pastos de melhor qualidade,[29]convencionou que Cteria o direito de apanhar pasto do terreno S, pasto esse que serviria para alimentar o gado que Cestá a criar no prédio We apenas na medida das suas necessidades. Este contrato teria a duração de 15 anos e seria oponível a terceiros adquirentes do imóvel onerado.
(5) Finalmente, Fvinculou-se a entregar todas as semanas, durante 20 anos, 100 Kg de pasto do seu terreno T.
A todos estes contratos Cpretende atribuir eficácia real, de forma a garantir a estabilidade e a continuidade da exploração económica que decidiu desenvolver.
Quid juris?
O pacto (5) que prevê a obrigação de o proprietário do prédio serviente cortar o pasto e de o entregar ao proprietário do prédio dominante não pode ter eficácia real. Trata-se da constituição de uma obrigação real, não prevista na lei, logo nula, por violação do princípio da taxatividade das obrigações propter rem.
As hipóteses (3) e (4), diferentemente, configuram claramente uma servidão predial, a que a doutrina dá o nome de servidões de fruição.
5. Conceito de Obrigação Real, propter remou ob rem
Henrique Mesquita define as obrigações propter rem como“vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra (titular ou não, por sua vez, de um ius in re) à realização de um prestação de dare ou de facere.”[30]
As obrigações reais estão sujeitas ao princípio da tipicidade. Com efeito, "fazendo as obrigações propter remparte do conteúdo do ius in re, há-de valer naturalmente para elas o princípio da taxatividade a que, por força do preceituado no artigo 1306º, nº1, estão subordinados, quer quanto às modalidades que podem revestir (numerus clausus), quer quanto ao respectivo conteúdo, os direitos sobre as coisas. A principal razão que, no campo dos direitos reais, justifica aquele princípio é a conveniência em não sujeitar o estatuto dos bens a vinculações desmotivadoras do seu pleno aproveitamento económico. Ora a liberdade de criação de obrigações propter rem, se acaso fosse admitida, seria a porta aberta para a introdução de todas as peias e gravames que o princípio da taxatividade pretende precisamente evitar."(itálico nosso)[31]
6. A possibilidade de desenvolvimento dos direitos reais com base na figura das servidões prediais voluntárias. Exemplos:
- Servidões de fruição
Do regime das servidões prediais avulta o princípio da inseparabilidade (art. 1545º) e o da indivisibilidade (art. 1546º).[32]O primeiro destes princípios resulta “da ideia de que a servidão há-de ser gozada através do prédio dominante (...). Como tem de ser gozada por intermédio do prédio dominante, a servidão não pode separar-se nem desse prédio, nem daquele sobre o qual o encargo recai. A servidão não pode ser cedida independentemente do prédio a que respeita, e o seu objecto mede-se, em princípio, pelas necessidades do prédio dominante.”[33]
A propósito deste princípio da inseparabilidade levanta-se uma discussão quanto às chamadas servidões de fruição. Guilherme Moreira[34], na vigência do Código Seabra, defendia que em nome do princípio da inseparabilidade este tipo de situações não poderiam ter carácter real. Estas servidões consistem, por exemplo, na utilização de pastos de prédio vizinho (hipótese (4)), ou no direito de cortar madeira para servir de matéria-prima na serração do prédio confinante, o direito de extrair argila para usar em fábrica existente no prédio dominante, etc. e são hoje unanimemente aceites como servidões prediais. Como afirma Mota Pinto, com o Código de 1966, "desde que "in concreto" o direito a essas utilidades esteja ligado a um prédio dominante (a que a doutrina italiana denomina de "utilità oggettiva"), encontramo-nos perante autênticas servidões."[35]Ponto é que essas utilidades, embora susceptíveis de separação, sejam gozadas por intermédio do prédio dominante e na medida das necessidades deste.
Trata-se de figuras já conhecidas no direito romano: entre as servitutes rústicasa servitutes cretae exhimendae, a servitus calcis coquendae, a servitus lapidis exhimendae, a servitus harenae fodiendaeque atribuem, respectivamente, o direito de extrair argila, cal, pedras e areia num fundusvizinho, insistindo as fontes que a utilidade não é pessoal, mas do fundusvizinho (dominante)[36].
- Servidões de não concorrência
Também parecem admissíveis as obrigações de não concorrência. Ou seja, uma situação na qual um prédio onde se exerce ou pode exercer uma determinada actividade económica se vincula a não exercer essa actividade em benefício de outro prédio, onde se localiza um estabelecimento concorrente. A doutrina e a jurisprudência italiana têm aceite estas servidões desde que a obrigação de não fazerseja imposta ao sujeito passivo não como pessoa, mas enquanto proprietário do prédio serviente, e a utilidade respeite necessariamente a um prédio que esteja adstrito a uma empresa enquanto factor produtivo, isto é o prédio dominante não deve ser simplesmente a sede da empresa, mas objecto da própria actividade exercida.
Assim, por exemplo, uma servidão de não explorar uma pedreira, de não utilizar água do próprio prédio, por forma a não prejudicar a utilidade concorrente do prédio vizinho.[37]
Se, pelo contrário, a obrigação de não concorrência esta prevista em vantagem da empresa enquanto tal (independentemente da inerência passiva ao prédio dominante) já não e admissível a configuração de uma servidão: tal contrato terá apenas eficácia obrigacional.[38]
- Servidões de indústria
A servidão de indústria demonstra que os direitos reais se podem adaptar à alteração do aproveitamento económico dos bens, mostrando a abertura do tipo servidão. Se num prédio existir algum estabelecimento comercial ou industrial, poderá constituir objecto da servidão qualquer utilidade que de um outro prédio se possa extrair a favor desse estabelecimento.[39]
Neste sentido, o art. 1028 do Codice civileafirma expressamente: “A utilidade pode consistir também na maior comodidade ou amenidade do prédio dominante. Pode igualmente ser inerente à afectação industrial do prédio.”
A “servitù industriale” é admissível quando a actividade económica exercida pelo proprietário do prédio dominante pressuponha necessariamente a existência dessa utilidade como meio de exercício da sua indústria. O termo industrial deve ser interpretado “no sentido lato romanístico de actividade do homem, dirigida à produção de bens e de serviços diferentes do cultivo ou utilização directa do fundo dominante.” Pode compreender não só uma actividade de produção, mas também de natureza comercial ou artesanal.[40]Nos exemplos de Pires de Lima e Antunes Varela, o direito de passear num parque ou de praticar desporto em determinado recinto de jogos, estabelecido em benefício do uma casa de repouso ou de um estabelecimento de ensino, estão relacionados com a actividade industrial instalada no prédio
- Servitus altius non tollendi
São perfeitamente válidas as servidões altius non tollendibem como as servidões non aedificandi. Tratando-se de servidões não aparentescarecem de registo para serem oponíveis a terceiros.
- Servidões que imponham um determinado estilo arquitectónico
Tomemos agora o caso de Nno âmbito de um destacamento de parte do logradouro do seu prédio urbano pretende que o futuro adquirente do prédio fique vinculado a, no caso de decidir construir nesse terreno, ter de respeitar um determinado estilo arquitectónico.
Trata-se aqui de uma servidão negativa, já que limita a soberania positiva do prédio serviente. E na medida em que não imponha uma obrigação de conteúdo positivo, mas se limite a impor o dever de não construir em estilo diferente do que esteja consagrado, parece poder considerar-se uma servidão predial. Afirma Pires de Lima e Antunes Varela que é “válida a obrigação de construir em determinado estilo, para não contrastar com o estilo do prédio dominante”.[41]
Este esquema técnico-jurídico pode aliás ser importante, enquanto instrumento de direito privado que vise um melhor ordenamento do território e um urbanismo mais harmónico, num determinado processo de loteamento.
7. Conclusão
A consideração dos direitos reais como tipos abertos, permitindo ampla conformação do seu conteúdo pelas partes, retira ao sistema de numerus clausus grande parte dos inconvenientes que usualmente lhe são apontados, maximea excessiva rigidez dos modelos impostos pela lei. Poucas serão as hipóteses em que as partes não encontrem um direito real capaz de acolher as suas pretensões. Quando existam pressões sociais no sentido de se criarem outras figuras reais, poderá o legislador intervir, como o fez a propósito do direito de superfície e do direito real de habitação periódica.
Este controle do Estado democrático sobre as figuras reais parece justificável tendo em conta a necessidade de uma boa exploração social e económica dos bens, e da exigência de defender o postulado da modernidade: terra livre para o homem livre.A servidão predial contém o filtro necessário para que os encargos com eficácia erga omnesnão se convertam em vinculações feudais.
[1]Texto da comunicação apresentada no Congresso Comemorativo dos 35 anos do Código Civil (Direitos Reais), que teve lugar nos dias 28 e 29 de Novembro de 2003 na Faculdade de Direito de Coimbra.
[2]Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas.
[3]Cfr. PAIS de VASCONCELOS, Contratos Atípicos, Coimbra, Almedina, 1995 e de Rui PINTO DUARTE, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Coimbra, Almedina, 2000.
[4]Karl LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª Edição, Lisboa, F.C.G., 1997, p. 650 e ss.
[5]Nas palavras de KAUFMANN, Analogie und „Natur der Sache“. Zugleich ein Beitrag zur Lehre von Typus, 2.ª Ed., Heidelberg, 1982, p. 47): “Der Typus bildet die Mittelhöhe zwischen dem Allgemeinen und dem Besonderem, er ist ein vergleichsweise Konkretes, ein universales in re.”
[6]VideOLIVEIRA ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968; Alessandro NATUCCI, La Tipicità dei Diritti Reali, Padova, Cedam, 1982.
[7]Orlando de CARVALHO, Direito das Coisas, Coimbra, Centelha, 1977, p. 230.
[8]Orlando de CARVALHO, Direito das Coisas, p. 249.
[9]A. SANTOS JUSTO, Direito Privado Romano – Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, p. 177 e MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, vol. II, Lisboa, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 114, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, p. 1031.
[10]Segundo PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, (com a colaboração de HENRIQUE MESQUITA),Código Civil Anotado, vol. III, 2º edição actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 614 "Só no direito moderno se terá operado a transição definitiva(que aliás se foi paulatinamente processado entre os autores) do sistema da tipicidade (da multiplicidade de tipos de servidões, com um conteúdo especificado) para a categoria genérica da servidão, com a possibilidade de os particulares definirem livremente o seu conteúdo."
[11]M. COMPORTI, “Servitù (dir. priv.)”, Enciclopedia Del Diritto, XLII, Giuffrè, 1990., p.276
[12]WILHELM, Sachenrecht, Walter de Gruyter, Berlin – New York, 1993, p. 611.
[13]C. LARROUMET, Droit Civil – Les Biens, Tome 2: Droits Réels principaux, 3e édition, Economica, Paris, 1997, p.466 e ss.
[14]Prescreve o art. 1544.º que: "podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor."
[15]Outros códigos, porém, especificam de algum modo este conteúdo. Vejamos o Codice Civile(italiano) que no art. 1028 estabelece: Nozione dell'utilità"L'utilità può consistere anche nella maggiore comodità o amenità del fondo dominante. Può del pari essere inerente alla destinazione industriale del fondo."
O Código Civil alemão admite que as servidões prediais tenham por objecto certos actos de uso por parte do proprietário do prédio dominante, ou a proibição de certos actos, ou a impossibilidade de o dono do prédio serviente exercer certos direitos contidos no direito de propriedade. Afirma o art. 1018º do BGB [Begriff] Ein Grudstück kann zugunsten des jeweiligen Eigentümers eines anderen Grundstücks in der Weise belastet werden, dass dieser das Grundstück in einzelnen Beziehungen benutzen darf oder dass auf dem Grundstücke gewisse Handlungen nicht vorgenommen werden dürfen oder dass die Ausübung eines Rechtes ausgeschlossen ist, das sich aus dem Eigentum an dem belasteten Grundstücke dem anderen Grundstücke gegenüber ergibt".
[16]PIRES DE LIMA, Servidões Prediais (Anteprojecto de um título do futuro Código Civil), Boletim do Ministério da Justiça, nº 64, Lisboa, Março de 1957, p. 8.
[17]José ANDRADE MESQUITA, Direito Pessoas de Gozo,Coimbra, Almedina,p. 67.
[18]As servidões pessoaisconstituem um direito real na Alemanha; cfr. §1090-1093, vide WILHELM, ob. cit., p. 623-626.
[19]M. COMPORTI, “Servitù (dir. priv.)”, Enciclopedia Del Diritto, XLII, Giuffrè, 1990, p. 279 e ss. Todavia, segundo este Autor, a evolução da teoria do desmembramento para a da restrição demorou ainda mais de meio século e seria apenas com a Pandectística que se modificaria a concepção da propriedade e da sua relação com os direitos reais limitados. Windscheid, de facto, por um lado, introduz, a propósito da propriedade, a nova concepção da totalidade dos poderes jurídicos do proprietário sobre a coisa, donde o domínio pleno constitui a superação da ideia da soma ou reunião das concretas faculdades; por outro lado, estabeleceu uma diversidade estrutural e qualitativa entre dominiume iura in re aliena.”
[20]Elsa SEQUEIRA SANTOS, Analogia e Tipicidade em Direitos Reais, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume IV – Novos Estudos de Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2003, p. 481.
[21]As utilidades podem ser futuras ou eventuais. Cfr. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 619.
[22]Cfr. art. 5.º, n.º1 e n.º 2, al. b) a contrario do Código do Registo Predial.
[23]PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 623, afirmam que este tipo de situações constitui “objecto de uma autêntica servidão, se estiverem adstritas ao aproveitamento de certo prédio dominante (casa de repouso ou hotel; couto de caça ou complexo turístico)."
[24]Estas hipóteses não se enquadram no usufruto, porque este atribui sempre o gozo, considerado como uma totalidade; de tal modo que se se quiser excluir alguma faculdade, essa terá de ser especialmente indicada. A técnica deste direito opõe-no claramente à servidão. Aqui, são as faculdades individualizadas de gozo que se concedem e que devem ser portanto especificamente referidas. Este será, portanto, um dos limites à abertura prevista na norma do art. 1445º, relativa ao exercício do usufruto. Cfr. MOTA PINTO, Direitos Reais, (Lições coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga), Almedina, Coimbra, 1970/1971.p. 307 e 314. Cfr., ainda, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, 5ª edição, revista e ampliada, Coimbra, Coimbra Editora, 1993. p. 472.
[25]M. COMPORTI,ob. cit.,p. 289.
[26]SANTOS JUSTO, ob. cit., p. 175.
[27]Este princípio foi também recebido pelo § 1021 BGB e pelo art. 730, 2 do Código civil suíço. Cfr. COMPORTI,ob. cit.,p. 300.
[28]COMPORTI,ob. cit.,p. 289. Exceptuam-se os encargos de natureza acessória que consistam em prestações de conteúdo positivo a cargo do proprietário do prédio serviente.
[29]Os prédios dominante e serviente não têm que ser contíguos, nem sequer vizinhos. Cfr. PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 618.
[30]HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990. p. 100.
[31]HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 282 e ss.
[32]Relativamente ao segundo, quer-se significar “que a divisão dos prédios, seja do prédio dominante, seja do prédio serviente, não pode atribuir a cada parcela direitos mais amplos ou impor maiores encargos do que os que lhe correspondiam antes da divisão.” PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 624.
[33]PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 622.
[34]GUILHERME MOREIRA Águas, II, Coimbra, 1960. pp. 30 e ss.
[35]MOTA PINTO, ob. cit., p. 311.
[36]SANTOS JUSTO, ob. cit. p. 181.
[37]COMPORTI, ob. cit., p. 292.
[38]COMPORTI, ob. cit., p. 292.
[39]PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 620
[40]COMPORTI, ob. cit., p. 293.
[41]PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 619.