sexta-feira, abril 27, 2018

“A Protecção Jurídica dos Animais” - 24 de Outubro de 2003, na Faculdade de Direito de Coimbra.


Este texto (até hoje - 27.4.2018 - inédito) tem por base a comunicação apresentada no Colóquio “A Protecção Jurídica dos Animais”, organizado pelo Centro de Ética e Direitos dos Animais e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e que teve lugar no dia 24 de Outubro de 2003, na Faculdade de Direito de Coimbra.

Relembro, com profundo respeito e admiração, o apoio institucional do Presidente do Conselho Diretivo, Prof. Doutor Manuel Porto, e do Regente da cadeira de Direitos das Coisas, Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita.

A organização operacional esteve a meu cargo, André Gonçalo Dias Pereira, enquanto vogal do Conselho Diretivo e estudioso de Direito Médico e, à época, Assistente de Direito das Coisas e Secretário científico do Centro de Direito Biomédico.


André Gonçalo Dias Pereira[1]


A emergência dos direitos dos animais


1. Os direitos dos animais estão aí!
Basta abrir o Diário da República[2]e especialmente o Jornal Oficial das Comunidades Europeias para perceber que a protecção jurídica dos animais se está a processar, de forma paulatina, gradual, mas bem direccionada.
No direito comparado encontramos uma nova compreensão juscivilística do estatuto dos animais em vários países europeus, sendo de destacar a evolução ocorrida na Áustria, na Alemanha, em França e na Suíça.
Na Áustria foi pioneira ao nível do direito civil, com a Lei federal sobre o estatutojurídico do animal no direito civil de 1 de Março de 1988.O Código Civil austríaco (ABGB), que adopta no seu § 285 um conceito de coisa muito amplo (abrange tanto as coisas corpóreas como as coisas incorpóreas), viu ser introduzido o § 285a, no qual se afirma: “Os animais não são coisas; estes são protegidos mediante leis especiais. As normas relativas às coisas são aplicáveis aos animais, na medida em que não existam disposições divergentes.”Por outro lado, foi introduzido simultaneamente um novo artigo, no âmbito da obrigação de indemnização, relativo às despesas de tratamento do animal ferido ‑ o § 1332a ABGB. Prescreve este parágrafo: “No caso de um animal ser ferido, são reembolsáveis as despesas efectivas com o seu tratamento mesmo que excedam o valor do animal, na medida em que um dono de animal razoável, colocado na situação do lesado, também tivesse realizado essas despesas.” Mais tarde, em 1996, procedeu-se a uma alteração do Código de Processo Executivo (Exekutionsordnung)e estabeleceu-se no § 250 (4) a impenhorabilidade de animais domésticos não destinados à alienação, face aos quais exista uma relação emocional e que tenham um valor inferior a € 750.
Na Alemanha, o § 90a (relativo aos animais) do Código Civil Alemão (BGB), foi introduzido em 1990. Afirma este parágrafo: "1.Os animais não são coisas. 2.Eles serão protegidos por legislação especial. 3.As normas relativas às coisas serão correspondentemente aplicáveis aos animais, salvo disposição em contrário.” Para além dessa alteração técnico-jurídica, por muitos considerada como meramente simbólica, a norma relativa aos poderes do proprietário [§ 903 BGB] prescreve agora que o “proprietário dum animal tem que observar no exercício dos seus poderes os preceitos especiais de protecção dos animais.” Também aqui, em matéria de obrigação de indemnização, foi estabelecido um regime mais favorável à “restituição natural” do animal, do que às coisas, na medida em que se deve indemnizar as despesas feitas em tratamentos veterinários com os animais, mesmo que excedam consideravelmente o valor deste (cfr. § 251 BGB). Por outro lado, em sede de processo executivo, o § 765a da Zivilprozessordnung(ZPO) prescreve: “Caso a medida judicial afecte um animal, o tribunal de execução tem que dar respeito à responsabilidade do homem pelo animal nas considerações que tiver de fazer.” E mais especificamente o § 811c ZPO determina que “Os animais criados na esfera doméstica e que não tenham fins lucrativos não são objecto da  penhora.” Todavia, o n.2 deste mesmo parágrafo permite que o tribunal leve a cabo um juízo de ponderação entre os interesses do dono do animal e os do próprio animal e os legítimos interesses patrimoniais do credor e decrete, e certos casos, a penhora de um animal doméstico.[3]
Também em França, com a Lei de 6 de Janeiro de1999, se regista uma alteração da concepção jus-civilística dos animais. O Code civil parte do conceito dos bens/ biens, os quais divide em móveis e imóveis. (art. 516). Com a alteração dos artigos 524 e 528 distingue-se claramente os animais dos objectos.[4]Já antes desta reforma existia uma jurisprudência em favor dos interesses dos animais, principalmente tomando em conta os interesses do proprietário.[5]Também no Direito penal, as infracções contra os animais encontram-se separadas das infracções contra os bens(infractions contre le biens), desde 1992.
Na Suíça, a Lei de 4 de Outubro de 2002, que entrou em vigor no dia 1 de Abril de 2003, trouxe alterações mais profundas no ordenamento jurídico. Não só se leva a cabo a alteração conceptual e linguística no sentido de os animais deixarem de ser considerados juscivilisticamente coisas (cfr. art. 641a do Código Civil (ZGB)), mas também se operam verdadeiras modificações substantivas no direito das obrigações, no direito das sucessões, nos direitos reais e no processo executivo. Assim, segundo o art. 43 n.º 1bis  do Código das Obrigações (OR), o dono ou os seus familiares têm direito a uma indemnização pelo valor de afeição adequado no caso de ferimento ou morte do animal de companhia. Por outro lado ainda, é estabelecida a impenhorabilidade destes animais no âmbito do processo executivo [Bundesgesetz über Schuldbetreibung (SchKG)Art. 92 Abs1 Ziff. 1a]. Como afirma Johanna Filip-Fröschl, neste ordenamento jurídico, “existem pela primeira vez preceitos meramente em favor do animal.” Assim acontece, quando a jurisprudência, em sede de processo executivo, considera os custos de alimentação do animalcomo “alimentos necessários” limitando assim os direitos do exequente. E quando, no direito das sucessões, o art. 482 (4) ZGB estabelece que “Sendo um animal beneficiário duma disposição mortis causa, esta disposição considera-se como ónus de cuidar do animal.”Também em relação aos animais achados são introduzidos novos preceitos que visam proteger directamente os animais: o achador dum animal tem que informar o proprietário e, se não o conhece, deve declarar em locais públicos indicados essa ocupação.

Estes exemplos do direito comparado devem ser analisados com cautela e alguma crítica. Efectivamente, muito boa doutrina entende que se trata de legislação populista e que, em boa análise, em nada beneficia a posição jurídica do animal. A simples mudança de nomenclatura, o facto de uma norma geral afirmar que os animais não são coisas não tem – dizem muitos autores – contribuído para melhorar as condições de existência concreta dos outros animais. Duvida-se mesmo que o direito civil possa contribuir para a protecção dos animais; talvez essa função só possa ser desempenhada pelo direito público (administrativo, contra-ordenacional e penal).
Posso concordar que “as primeiras tentativas de melhorar a posição jurídica dos animais ainda foram feitas sem coragem suficiente para alterar verdadeiramente a posição jurídica do animal e conduziram em primeiro lugar a um melhoramento da posição jurídica do proprietário do animal.”[6]Efectivamente, as normas referidas sobre a impenhorabilidade e o direito à indemnização por despesas veterinárias superiores ao valor do animal protegem em primeira linha o proprietário do animal e só indirectamente o próprio animal. Sobretudo, – e é aqui que a minha crítica é mais severa – esta legislação apenas protege os animais de companhia, descurando e ignorando absolutamente os outros animais (de trabalho ou de criação).[7]Esta legislação, mais que promotoras da condição jurídica do animal, são leis típicas de uma sociedade pós-industrial em grave declínio de natalidade.[8]
Pela minha parte, porém, auguro um destino mais nobre e mais positivo a estas primeiras experiências legislativas. Elas inserem-se num movimento amplo, em que intervêm os vários ramos do direito, e em que as dogmáticas tradicionais começam a ser ‘irritadas’(no sentido de Luhmann) e a adaptar-se a um nova ética imposta por uma sociedade que se pretende mais justa para com os outros animais. A libertação da mulher, de raças não brancas, e outras minorias também começaram titubiantemente com afirmações vagas de princípio e normas aparentemente inócuas ou “de mera cosmética”!
Diria, a título meramente intuitivo, que um Código civil que afirma “os animais não são coisas”, como o austríaco, o alemão, o francês e o suíço, dá mais armas aos juristas para defender os animais que um tradicional que prescreve: “Podem ser adquiridas por ocupação os animais e outras coisas móveis(...)”, como regula o art. 1318.º do nosso Código Civil.

A dogmática juscivilística está, pois, a ser provocada. Todavia, a discussão jus-filosófica sobre se os animais são titulares de direitos subjectivos, ou se gozam tão-só de uma protecção do Direito objectivoé extremamente complexa e não vai ser aqui discutida. Tão-pouco me pronunciarei sobre se os “outros” animais têm ou não personalidade jurídica. Seja como for, não nos esqueçamos que estes conceitos são criados pelo homem, inacessíveis aos outros animais. Pergunto apenas se será lícito retirar consequências de acção em razão de uma certa classificação filosófico-jurídica que uma espécie faça? Mais a mais sabendo-se – no estado actual da ciência -‑ que os outros animais não desenvolvem conceitos filosóficos!
Um dado me parece que estes trinta anos de discussão já deixaram bem claro ao pensamento jus-filosófico dominante: os outros animais são portadores de um valor moral intrínseco.
Por outro lado, quem viu e quem sentiu o filme de Pedro Almodóvar Fala com elacompreende o quanto este debate, este movimento de promoção do respeito devido aos animais, pode fazer pelo modo como entendemos o homem. O modo como olhamos o próximo, depende tanto do modo como respeitamos o outro. Ver aquela mulher, em estado de coma, como ser não racional, não livre, não responsável, sem deveres, como um ser humano dependente, ou seja, um animal dependente que apela à misericórdiae que se afirma assim titular de direitos. Sem contrato, sem linguagem, sem barganha. Antes um ser vulnerável, merecedor da nossa compaixão, do respeito e titular de uma inerente dignidade.
Bem-haja pois, e em última instância até em nome da dignificação do homem, o movimento de respeito pelos outros animais.

2. Protecção jurídica dos animais: a razão independentemente do coração
Não sou um amigo dos animais. Não tenho grande ternura por animais. Nunca tive um cão nem um gato. Não condeno veementemente a tourada. Sou ainda um apreciador de boa carne. Cheguei aqui por razões meramente intelectuais e de dever universitário: sabendo que o Prof. Fernando Araújo ia arguir a minha tese de Mestrado li a sua obra[9], que me ofereceu novos horizontes na compreensão do Direito e do pensamento ético. Na verdade, a literatura relativa a este tema é de uma profundidade radical e causa reacções de grande perplexidade. O entusiasmo intelectual que o discurso animalista proporciona provoca em todos aqueles que tiverem a abertura e a curiosidade para a conhecer uma revolução coperniciana no modo como compreendemos o estatuto dos outros animais.
Por outro lado, julgo que se está a virar uma página em Portugal: o Biodireito deixa de ser um domínio reservado do animal homem para se começar a estender aos outros animais.
A primeira perplexidade com que me defrontei é a seguinte: por que defendem estes homens e mulheres os animais? Ou perguntando de forma mais geral. Por que se defendem minorias ou desfavorecidos? Por que razão há homens a defender os direitos das mulheres? Heterossexuais a defender o respeito pelos homossexuais; brancos a defender os direitos dos negros? E pessoas nascidas a defender os direitos dos embriões?
Se esta pergunta – naturalmente retórica – mostra pontos de contacto entre a “libertação animal” (Peter Singer) e outros movimentos de libertação que o antecederam, não posso deixar de pensar que este movimento é o mais revolucionário de todos. Não se trata aqui de defender classes de humanos contra outras classes de seres humanos. Ou seja de argumentar na disputa própria do contrato social a favor de intervenientes que estavam excluídos ou cuja voz não era suficientemente ouvida. Versamos aqui sobre a necessidade de o ser humano autolimitar a sua brutalidadeem nome do imperativo ético da compaixão e do respeito universal pelos seres que connosco partilham a existência. Procura-se pois passar do homem-bestapara o homem piedoso.Não se visa uma ampliação do contrato, mas um radical respeito pelos seres sensientes.
Chegamos aqui depois dos horrores dos matadouros industriais e das infâmias da segunda grande guerra – como Charles Patterson em Eternal Treblinka demonstrou. Porém, as bases teóricas estavam lançadas já com os grandes sismos de oitocentos. Penso nos pressupostos revolucionários do século XIX, com Freud e Darwin a assumirem-se como pilares fundamentais do discurso animalista. Especialmente Darwin e a teoria da evolução das espécies que logrou a superação da cisão homem/ animal.[10]Com a taxonomia que aprendemos nos liceus das últimas décadas é simples compreender e aceitar a terminologia “animais não humanos” ou “humanos animais” e o discurso subsequente que nos é proposto pela literatura da especialidade.
Contudo, observo que defendemos esta piedade universal – e não será o animal Homem, de facto, uma raposa esperta? – antes da chegada do futuro pós-humanoanunciado por Francis Fukuyama[11]e já revelado por Spielberg em Inteligência artificial.

3. Pós-darwinismo: uma ameaça aos direitos dos animais?
O darwinismo e seu desenvolvimento científico de mais de cem anos é pois uma base teórica estruturante de toda a doutrina dos direitos dos animais. Todavia, esta dogmática científica está naturalmente sujeita à historicidade, podendo vir a ser superada por outra que venha a merecer a confiança e a “aprovação da comunidade científica” (Karl Popper).
Neste domínio começam a surgir alternativas científicas.
Veja-se o português António Lima-de-Faria, um nome conceituado na comunidade científica internacional.[12]Na sua obra Evolution without selection. Form and function by autoevolution.[13]
Recentemente Jann Sapp vem apresentando uma outra teoria da evolução das espécies. 
“Para Jann Sapp a partilha entre organismos é pedra de toque da evolução da vida na terra. Os organismos transformaram-se e complexificaram-se, dando origem a novas espécies, através de trocas intensas de material genético entre si (simbiogénese), tal como acontece entre bactérias e vírus. A evolução seria assim não uma árvore, como aprendemos na escola, com espécies a sucederem-se umas às outras numa hierarquia determinada, mas uma rede, com os organismos a diferenciarem-se através deste mecanismo que é a permuta de partes dos seus genomas, dando assim origem a novos organismos e espécies. Esta seria, aliás, a maneira de explicar algo que o neodarwinismo nunca conseguiu fazer completamente, que é a imensa variedade de espécies que convivem na terra.
Os conceitos de simbiose (a vida conjunta de organismos muito frequente na natureza) e da simbiogénese não são novos. O que é novo é a sua utilização no contexto da evolução das espécies.
Os seres humanos como “super-organismos”. Neles convivem em equilíbrio o genoma próprio e os de mais de 400 espécies de bactérias e vírus, que são decisivos no metabolismo humano.”[14]
Esta notícia gerou-me outra estupefacção: uma eventual superação da doutrina darwiniana demonstra uma ainda maior interacção entre as espécies e uma extraordinária dialéctica evolutiva que urge respeitar.
Ou seja: o homem é não só animal – já assim com Darwin – mas o homem evoluirá na interacção com os outros seres vivos.
Destas ideias resulta uma conclusão: a sociedade e o direito reconhecem hoje um estatuto moral aos animais, incompatível com o seu sofrimento cruel e desnecessário. A linha de evolução da protecção jurídica dos animais deve ser desenvolvida e incentivada.

4. As gravuras de Foz Côa: do caçador-recolector ao matador-consumidor
Quem se deslocar a Foz Côa (classificado pela UNESCO como Património da Humanidade) terá o prazer de apreciar arte rupestre com mais de 20.000 anos, criada por homens sapiens sapienscomo nós. Os motivos mais frequentes são a representação dos animais. Uma obra de arte magnífica é o desenho de um salmonídeo (cuja espécie já desapareceu do nosso convívio) de género feminino que se dirigia para a nascente do Côa com o ventre inchado. Esta representação demonstra respeito pelo ciclo de vida dos outros animais e uma interacção saudável entre o homem e os outros animais. Daquela pequena exposição de arte resultam duas conclusões simples. Por um lado, a espécie homem sapiens sapiens conseguiu criar para uma partedos seus membros boas condições de vida, que inegavelmente não tínhamos há 24.000 anos. Por outro lado, a nossa relação com os animais é hoje muito diferente.
Com efeito, a relação com o animal-alimentoé hoje perversa, brutal e imoral.
Na minha opinião a falta de relação entre o homem e os outros animais é a maior perversidade da sociedade industrial. A urbanização deu origem às quintas industriais; estas permitiram uma substancial diminuição dos preços da carne e outros produtos de origem animal, os proletários foram induzidos ao consumo em massa de proteínas animais, causando um terrível desequilíbrio no ecossistema e verdadeiras linhas de tortura organizada e subsidiada pelo Estado, sobretudo pela Comissão Europeia e pelo Ministério da Agricultura norte-americano. O Agrobusinessque se desenvolveu ao longo dos últimos 100 anos é um atentado ao estatuto moral dos animais.
Todos temos consciência de como morrem mais de5 biliões de aves por ano, só nos Estados Unidos, como vivem toda uma vida as vacas que dão um tenro bife ‑ encaixotadas em, quiçá, 2 m2; como são transportados e abatidos os suínos; as galinhas que nunca deram um passo; as vacas leiteiras intoxicadas em antibióticos para combater as mastites dolorosas crónicas, etc.
Por outro lado os combates que têm tido mais visibilidade na opinião pública são a luta contra o abandono dos cães domésticos ou as infindáveis discussões sobre a tourada.
Apetece perguntar, de forma provocadora, se não se tratará a tourada e uma certa caça controlada e para consumo manifestações saudáveis de inter-relação homem-animal. Naquelas quintas os animais andam ao sol e convivem com a sua espécie. Deverá o movimento de protecção dos animais concentrar-se nareacção face a pequenos símbolos de marialvismo que afinal ainda poderão mostrar uma ligação do homem com a natureza?[15]Os próprios desfiles de cães ou os espectáculos de animais, os circos e os jardins zoológicos não serão espaços que – embora devam sempre ser aperfeiçoados e mais animalizados – permitem uma adequada superação deste cisma especista em que a revolução industrial no lançou?
Por vezes, ao ler a literatuta animalista fico com receio que se esteja a defender um apartheidhomem-animal. Pergunto, pois, que dinâmica pode haver entre homem e animal? Que mundo asséptico é esse onde as crianças não podem ir ao circo ver os leões e os elefantes, onde os jardins zoológicos deveriam ser encerrados?
Muito meritório tem sido também o combate das associações zoófilas contra os degradantes encontros de tiro aos pombos[16], de luta de cães e luta de galos, ou outras ilícitas e imorais violências contra animais.
Uma das importantes tarefas dos nossos dias é, na minha opinião, debater e desmascarar publicamente o Agrobusinesse os matadouros industriais; os abusos da indústria farmacêutica e cosmética. Não será por acaso que Singer[17]elege estes temas no seu livro fundamental.
Uma palavra mais sobre esse flagelo para os animais, homens incluídos: a Agrobussiness. Esta indústria causa um inaceitáveldesequilíbrio no comércio mundial.A Política Agrícola Comum é um atentado à ética mínima de convivência entre espécies. Os nossos impostos permitem encher frigoríficos com manteiga e com leite e a super-produção de carne. Quando essa carne não mais pode ser conservada, faz-se farinha e com esta farinha de carne de vaca alimentam-se mais vacas(!) As quintas-indústria (Factory farm) tratam os animais como meros instrumentos para o lucro. As Factory farms causam mais sofrimento aos animais que qualquer outra instituição ou prática humana. Por outro lado, os consumidores não precisam dos produtos das quintas industriais. As proteínas vegetais são mais saudáveis e custam muito menos água e recursos naturais do que as animais. A Agrobusiness devasta o ambiente. Consome energia, os solos e água. Causa erosão do solo, destruição do ecossistema natural, deflorestação, poluição da água devido aos pesticidas, e outros químicos.[18]Por outro lado, o homem está a sofrer as doenças da civilização carnívora: doenças coronárias, obesidade, enfartes, osteoporose, diabetes, certos cancros.
A iniquidade na distribuição dos recursos naturais é patente e notória: são necessárias 8 libras de proteína para gerar uma libra de carne de porco e 21 libras de proteína para 1 libra de carne de vaca. Assim, os ricos – consumidores de carne de vaca – destroem mais proteínas que os pobres. E sobretudo, os carnívoros consomem mais recursos naturais que os vegetarianos.[19]
Penso ser uma prioridade ética com vista à protecção dos direitos dos animais a não sofrer cruelmente da forma industrial a que têm vindo a estar sujeitos nos últimos 100 anos a promoção de uma política alimentar mais saudável, retomando-se os hábitos dos homens sapiens sapiens que eram omnívorose não carnívoros

5. A investigação científica com animais: o especismo das Comissões de Ética.
Já hoje está publicada alguma legislação no sentido de proteger os animais na investigação científica.[20]Todavia os projectos de investigação com animais não estão sujeitos a um parecer ético por parte das Comissão de Ética Hospitalares ou outras.[21]
Assim, penso que se consagra um especismo injustificado num domínio onde os animais na sombra dos laboratórios e na humilhação de ser cobaia mais se encontra sujeito a abusos que levem a sofrimento cruel.
Dever-se-ia, portanto, promover legislação de protecção dos animais na experimentação científica, no sentido de exigir um controlo ético da experimentação em animais. Não se vislumbram argumentos razoáveis para que as Comissões de Ética dos Hospitais ou das Faculdades de Medicina, que avaliam projectos de investigação em seres humanos, não sejam competentes para avaliar projectos de experimentação com outros animais. Na constituição destes comités de ética talvez devesse estar obrigatoriamente presente um veterinário, pelo menos quando se debatessem experiências com animais. Ou seja, parece-me necessário que as Comissões de Ética se pronunciem sobre investigação em animais, acrescido naturalmente de um rigoroso controlo da investigação. O projecto de transposição da Directiva 2001/20/CE pretende centralizar a ética, retirando às Comissões de Ética para a Saúde a competência para avaliar os projectos de investigação. Parece razoável que o órgão que se pronunciará sobre os ensaios clínicos, que virá a ser constituído, emita um juízo ético e controle a investigação que se pratica com animais não humanos.
A ideia pode parecer provocadora apenas porque não correponde ao status quo. Um dia veremos – e afirmo isto sem qualquer providencialismo – como tudo isto é banal!

6. Protecção dos animais não humanos: um novo horizonte para o biodireito em Portugal
É tempo de concluir por onde comecei. A Bioética e o biodireito apenas podem ficar enriquecidos com o dinâmico, aberto e fértil debate em torno dos direitos dos animais. Respeitando os outros animais promovemos o respeito pelos seres humanos.




[1]Mestre em Ciências jurídico-civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Secretário científico do Centro de Direito Biomédico. andreper@fd.uc.pt.
Este texto tem por base a comunicação apresentada no Colóquio “A Protecção Jurídica dos Animais”, organizado pelo Centro de Ética e Direitos dos Animais e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e que teve lugar no dia 24 de Outubro de 2003, na Faculdade de Direito de Coimbra.
[2]Actualmente encontra-se uma panóplia de diplomas de protecção dos animais. Veja-se, a mero título de exemplo, o Decreto-Lei n.º 129/92, de 6 de Julho: transpõe a Directiva n.º 86/609/CEE, do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, relativa à protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins científicos; a Convenção Europeia para a protecção dos animais de companhia (DR, IA, n.º 86, de 13.04.1993); o Decreto-Lei n.º 28/96, de 2 de Abril: Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 93/119/CE, do Conselho, de 22 de Dezembro, relativa à protecção dos animais no abate e ou occisão; o Decreto-Lei n.º 294/98, de 18 de Setembro: Estabelece as normas relativas à protecção dos animais durante o transporte e revoga o Decreto-Lei n.º 153/94, de 28 de Maio, e a Portaria n.º 160/95, de 27 de Fevereiro; a Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro: Lei de Bases Gerais da Caça e a fundamental Lei de Protecção dos Animais (Lei n.º 12/95, de 12 de Setembro, alterada pela Lei 19/2002 de 21.07). Esta selecção, caótica e algo aleatória, mostra através dos seus próprios títulos os diversos temas que costumam ocupar a literatura dos direitos dos animais.
[3]  § 811c, II, ZPO: “A pedido do credor, o tribunal de execução pode decretar a penhora tendo em conta o valor económico do animal, se a impenhorabilidade significar uma limitação injustificável aos direitos do credor, mesmo tendo em consideração os interesses da protecção dos animais e dos interesses legítimos do devedor.”
[4]Art. 524: “Les animaux etles objets que le propriétaire d’un fonds y a placés pour le service et l’exploitation de ce fonds sont immeuble par destination.”
[5]Especialmente em caso de divórcio, a jurisprudência regulava o direito de visita dos animais de companhia D. 1980, IR, p. 75, Gaz. Pal. 1983, 2, Jur. p. 412; também no direito da locação consagra-se o direito de criar animais domésticos. Por outro lado, desde o famoso caso «Lunus» em 1962, o dono tem um valor de afeição no caso da morte dum animal causada culposamente. Cfr. Johanna Filip-Fröschl, “Os Animais: coisas ou co-criaturas”, Conferência apresentada no Congresso Comemorativo dos 35 anos do Código Civil (Direitos Reais), organizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dias 28 e 29 de Novembro de 2003, no prelo. Agradeço à Autora austríaca a cedência do texto.
[6]Johanna Filip-Fröschl, “Os Animais: coisas ou co-criaturas”, ob. Cit..
[7]Apetece lembrar Peter Singer quando no Prefácio do seu livro, Animal Liberation, nos relata o chá com as Senhoras da sociedade inglesa que lhe perguntam pelos seus ‘gatinhos’!
[8]Por ocasião do debate parlamentar na Áustria foi apontado o facto de que em Viena vivem muito mais cães do que crianças com menos de 4 anos de idade.
[9]Fernando Araújo, A Hora dos Direitos dos Animais, Coimbra, Almedina, 2003.
[10]Sobre a influência de Darwin no pensamento europeu de final de oitocentos, em especial em Portugal, vide Ana Leonor Pereira, Darwin em Portugal [1865-1914]: Filosofia, História, Engenharia Social, Coimbra, Almedina, 2001.
[11]Francis Fukuyama, Our Posthuman Future – Consequences of the Biotechnology Revolution, London, Profile Books, 2002.
[12]O cientista português destacou-se no campo da biologia molecular, tendo trabalhado durante ceca de quarenta anos no Institute of Molecular Cytogenetics da Universidade de Lund na Suécia, o qual dirigiu até à sua jubilação.
[13]António Lima-de-Faria, Evolution without selection. Form and function by autoevolution, Amsterdam [etc.], Elsevier 1988. O autor – escreve Ana Leonor Pereira, “O Darwinismo em Dicionário”, Revista da História das Ideias, Vol. 18, Faculdade de Letras, Coimbra, 1996, p. 536-537 ‑ “inscreve-se na tradição racional da anatomia e da morfologia comparadas, sobretudo de G. Cuvier, J.-B. Lamarck e d’Arcy Thompson. Na leitura de Michel Gillois, especialista de genética somática, genética das populações e modelos matemáticos, os argumentos do cientista português são considerados “muito pertinentes” e devem, por isso, ser cuidadosamente avaliados. Em síntese: “Il [Lima-de-Faria] insiste sur l’unicité des contraintes physiques qui pèsent sur les solutions élaborées par l’évolution, qu’elle soit minérale, chimique, ou biologique. Il illustre combien les formes possibles sont en petit nombre, nous donnant l’image de l’isomorphisme. En refermant son livre, on a le sentiment que A. Lima-de-Faria, sans pouvoir vraiment l’exprimer, attend de l’étude des systèmes dynamiques de la morphogenèse l’ouverture vers un début de la compréhension des mécanismes de l’évolution. Parce que ces systèmes dynamiques sont nécessairement sous un contrôle génétique polylocus, ils devront être intégrés dans le cadre de la modélisation mathématique de la génétique de population” (Dictionnaire du darwinisme et de l’évolution, publié sous la direction de Patrick Tort, Paris, P.U.F., 1.ª Ed., 1996, vol. 2, p. 3224).Conclui a historiadora “ser ponto assente que o auto-evolucionismo de Lima-de-Faria não é um neo-darwinismo.”
[14]Diário de Notíciasde 22-10-03.
[15]Sem embargo de aceitar que o debate sobre a justificação da tourada deve continuar e de eventualmente Portugal vir a ser pioneiro a nível ibérico na abolição deste espectáculo que contribui para a degradação da condição animal. Soluções políticas apressadas podem ter o resultado de 1836, ano em que foram proibidas as touradas, por decreto de 19 de Setembro de 1836, que teve de, passado um ano, em 30 de Junho de 1837, fazer marcha-a-trás. Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II – As Coisas, Coimbra, Almedina, 2000, p. 222. O Professor introduziu a questão do estatuto jurídico dos animais como objecto de estudo do direito civil em Portugal.
[16]Vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29 de Outubro de 2003 (Agravo Cível 715/03; Proc. 223/03, 1.ª Vara Mista Guimarães; Relator Des. Espinheira Baltar, Adjuntos Des. Arnaldo Silva e Des. Silva Rato), que conclui, muito acertadamente, “A actividade de tiro levada a cabo pela recorrente e coordenada pela Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça é ilícita, no actual ordenamento jurídico português, tendo em conta a interpretação da lei 92/95 de 12 de Setembro à luz da perspectiva actualista.”
[17]Peter Singer, Libertação Animal (trad. p/ Maria de Fátima St. Ubyn), Porto, Via Óptima, 2000.
[18]Vide Ben Mephan (Ed.), Food Ethics, London and New York, Routledge, 1996. Aqui se coligem vários artigos relativos a vários temas em que a ética alimentar urge ser repensada e estudada, tais como a fome no terceiro mundo, a ajuda à produção nos países desenvolvidos e o desequilíbrio no comércio internacional, a sustentabilidade dos sistemas alimentares, a condição dos animais enquanto produtores de comida, a equação entre a produção de alimentos, a nutrição e a saúde, a segurança alimentar e a biotecnologia aplicada à indústria alimentar.
[19]Cfr. David DeGrazia, Animal Rights – A very short introduction, Oxford University Press, 2002, pp. 67 e ss.
[20]Decreto-Lei n.º 129/92, de 6 de Julho: transpõe a Directiva n.º 86/609/CEE, do Conselho, de 24 de Novembro de 1986, relativa à protecção dos animais utilizados para fins experimentais e outros fins científicos.
[21]Cfr. o Decreto-Lei n.º 97/94, de 9 de Abril e o Decreto-Lei n.º 97/95, de 10 de Maio. Estes diplomas apenas exigem um parecer (vinculativo) da Comissão de Ética Hospitalar no caso de ensaios clínicos em seres humanos. A Directiva 2001/20/CE do Parlamento e do Conselho de 4 de Abril de 2001, também se limita a regular a “aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados - Membros respeitantes à aplicação de boas práticas clínicas na condução dos ensaios clínicos de medicamentos para uso humano”, entendendo por ensaio clínico “qualquer investigação conduzida no ser humano...”