terça-feira, novembro 15, 2011

STJ - nascituro; personalidade jurídica e dano da morte



Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
09-10-2008
BETTENCOURT DE FARIA
Processo
07B4692

PROVA TESTEMUNHAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
NASCITURO
PERSONALIDADE JURÍDICA
DIREITO À VIDA
INDEMNIZAÇÃO
I – As seguradoras podem demonstrar o cumprimento do ónus de envio do aviso de recepção da carta registada comunicando a suspensão da garantia decorrente do seguro por meio de prova testemunhal. II – O co-devedor solidário não tem legitimidade para pedir a condenação do outro devedor, dado que a existência deste não mitiga a sua obrigação de prestar, ao contrário do que sucede do lado activo, em que um maior número de devedores reforça a garantia patrimonial do crédito.
III – Numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica, não é possível adoptar um conceito de dignidade humana, de origem metafísica, segundo o qual o ser humano tem uma essência espiritual presente desde o momento da concepção.
IV - O artº 66º nº 1 do C. Civil, ao atribuir a personalidade jurídica, apenas ao nascido com vida, não é incompatível com o artº 24º nº 1 da Constituição, quando diz que a vida humana é inviolável, uma vez que o preceito constitucional, neste caso, está a proteger a vida uterina ainda não integrada numa pessoa.
V – Assim, não há lugar à reparação por perda do direito à vida de um feto que faleceu em consequência de acidente de viação.
VI – É equilibrado atribuir € 100,000,00 de indemnização pelo dano patrimonial futuro a um lesado que tinha 20 anos e ficou incapaz de desenvolver a actividade donde obtinha um rendimento diário de € 25.
VII – Não se justifica baixar uma indemnização por danos não patrimoniais de € 30.000,00, sendo € 20.000,00 pelo sofrimento físico derivado das lesões e pelas suas sequelas permanentes e € 10.000 pela perda do filho ainda não nascido.
VIII – As indemnizações calculadas com base na equidade têm de ser entendidas, salvo expressa menção em contrário, como actualizadas, pelo que vencem juros a partir da primeira decisão condenatória.



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I AA moveu a presente acção ordinária contra BB e marido CC e contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que os réus fossem condenados a, solidariamente, pagarem-lhe a quantia de € 276.035,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, derivados dum acidente de viação ocorrido quando era transportada gratuitamente como passageira num veículo automóvel, conduzido pela 1º ré e propriedade do 2º réu.
Alegou que tal acidente foi causado pela condução negligente da 1ª ré e do condutor de um outro veículo que não chegou a ser identificado, sendo certo também que o veículo onde se fazia transportar não tinha, à data, seguro válido, cobrindo a responsabilidade civil pelos danos que pudesse causar.
Apenas contestou o FGA, que impugnou os factos, questionou o montante exagerado das quantias peticionadas por alguns dos danos e a ressarcibilidade de outros, acabando por invocar a franquia legal, que, a proceder a acção, sempre teria de ser descontada no montante dos danos patrimoniais.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação entendido que o acidente fora devido a culpa da condutora, onde aquela se fazia transportar e, consequentemente, julgando parcialmente procedente o recurso, condenou a 1ª ré e o FGA a pagarem à autora a quantia de € 161.972,56, acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a citação. Mais absolveu do pedido o 2º réu.

Recorrem, agora o réus FGA e a autora, os quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

recurso do réu FGA

1 A alteração pela Relação da resposta ao quesito 11º de “não provado” para “provado” traduz errada apreciação dos documentos juntos aos autos e de incorrecta aplicação da lei, com violação do disposto nos artºs 7º e 8º do DL 142/00 de 15.07 e 342º do C. Civil.
2 Na data do acidente o condutor do veículo BV tinha um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº 7066244, que garantia a responsabilidade civil pelos danos provocados a terceiros, emergentes da circulação desse veículo.
3 A Seguradora – Companhia de Seguros Mundial Confiança – informou ter resolvido esse contrato, com efeitos a partir de 15.08.99, por falta de pagamento do respectivo, mas não juntou aos autos a carta enviada ao tomador do seguro, a que alude o artº 4º nºs 1 e 2 do DL 105/94 de 23.04, alegadamente por já o não poder fazer.
4 A existência do contrato de seguro prova-se com a apólice e actas respectivas, ou mediante qualquer das situações previstas no artº 20º do DL 522/85 de 31-12, isto é, prova-se apenas por documento escrito, pelo que aquela resposta da Relação ao quesito 11º traduz ofensa de disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixa a força de determinado meio de prova (artº 722º nº 2 do C. P. Civil), sendo fundamento de revista.
5 Era sobre a autora lesada que impendia o ónus de provar os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do FGA, incluindo o de que o veículo circulava sem cobertura de nenhuma apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e que era um dos elencados no artº 21º daquele DL 522/85.
6 O tribunal a quo, face à prova de que o réu CC é o proprietário do veículo causador do sinistro e sujeito da obrigação de segurar, deveria ter julgado a acção também procedente contra este réu, condenando-o, nos precisos termos em que condenou a ré BB e o FGA, como decorre do disposto no nº 3 do artº 25º do citado DL 522/85.
7 Não o fazendo, violou o dito tribunal o disposto nos artºs 2º, 20º,21º,25º e 29º deste DL e o artº 567º do C. P. Civil
8 A indemnização de € 100.000,00, atribuída à autora a título de danos patrimoniais futuros, é excessiva, devendo ser fixada, segundo a equidade, em € 40.000,00.
9 Ao fixá-lo naquele montante, a Relação violou o disposto nos artºs 483º, 562º e 564º nº 2 do C. Civil.
10 A indemnização arbitrada à autora, a título de danos não patrimoniais por ela sofridos, não deveria, em juízo de equidade, ultrapassar € 10.000,00.
11 Com a sua fixação em montante superior, o acórdão recorrido violou os artºs 483º, 562º nº 2 e 493 nº 3 do C. Civil.
12 A título de compensação pelo sofrimento da perda do filho, é justo e adequado, em critétio de equidade, atribuir à autora a quantia de € 5.000,00.
13 Ao entender justificado um montante superior, o acórdão recorrido violou os artºs 483º, 562º, 566º nº 2 e 496º nº 3 do C. Civil.
14 Quando o valor da indemnização se reporta à data da sentença de 1ª instância, como no caso em apreço, apenas são devidos juros de mora a partir dessa data e não desde a citação.
15º A decisão recorrida violou, neste particular, os artºs 566º e 805º nº 3 do C. Civil.

recurso da autora

1 O artº 24ºda Constituição protege o direito à vida e integridade física e psíquica do ser humano, englobando nessa protecção o nascituro.
2 A ofensa do direito à vida intra-uterina constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade.
3 Para reparar a perda do direito à vida do filho nascituro da autora é ajustada a quantia de € 50.000,00.
4 Deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte.
5 A não se entender assim, ou seja, que o artº 66º do C. Civil o não permite, será tal interpretação materialmente constitucional, porque ofensiva do disposto no artº 24º da Lei Fundamental.
6 O montante da indemnização pelo dano patrimonial futuro a atribuir à autora não deve ser inferior a € 150.000,00, provado que esta ficou com uma incapacidade de 10% para o trabalho em geral e de 50% para o exercício da profissão que exercia.
7 Deve ser atribuída à autora uma indemnização autónoma pelo dano estético, de afirmação pessoal e sexual, não inferior a € 45.000,00.
8 Às peticionadas indemnizações devem acrescer juros legais desde a citação.

9 O acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 66º e 483º do C. Civil e 24º da Constituição da República.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
As instâncias deram por assentes os seguintes factos, consideradas já as alterações introduzidas pela Relação:

1 No dia 07.11.99, pelas 5H15M, na EN nº 15, em Marecos, concelho de Penafiel, a ré BB conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, Citroen AX, de matrícula ...-...-BV, no sentido Paredes-Penafiel.
2 Ao chegar próximo do km 29,3 da EN 15, a ré saiu da hemi-faixa direita por onde circulava, atento o seu sentido de marcha, entrando na berma direita e seguindo pela ravina abaixo existente desse lado da berma e indo embater numa árvore existente ao fundo da mesma ravina, onde o veículo ficou imobilizado.
3 Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o piso estava seco, estava nevoeiro, a estrada era alcatroada e a faixa de rodagem tinha 6,40 metros de largura.
4 A autora seguia como passageira, gratuitamente, ao lado da condutora.
5 O veículo de matrícula ...-...-BV, à data do acidente, pertencia ao réu CC.
6 O réu CC autorizou a ré BB a conduzir esse veículo, visando o transporte desta para casa, depois de uma noite de trabalho num pub/bar, “Convívio”, sito em Frazão, Paços de Ferreira, que ambos exploravam com o intuito de lucro.
7 A autora, sendo empregada dos réus CC e BB como animadora do “Convívio”, regressava a casa depois de uma noite de trabalho.
8 A ré BB estivera a trabalhar na discoteca denominada “Convívio”.
9 A ré BB não conseguiu imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, entrando na berma e seguindo por uma ravina abaixo, quando lhe apareceu um veículo em sentido contrário.
10 O condutor que circulava em sentido contrário não parou, não permitindo a sua identificação.
11 A autora foi transportada para o Hospital de Padre Américo – Vale do Sousa – e deste para o Hospital de S. João, no Porto.
12 No Hospital de S. João do Porto, foi a autora submetida, de urgência, a tratamentos, exames auxiliares de diagnóstico e análises, mormente a uma
operação cirúrgica (cesariana), para remoção do feto de seu filho, que falecera em consequência do acidente e que estava morto no seu ventre.
13 Depois, foi a autora transferida de novo para o hospital de Padre Américo – Vale de Sousa, onde veio a ser objecto de tratamentos, análises e intervenções cirúrgicas à anca, às duas pernas e ao braço esquerdo.
14 Mais tarde, veio a ser novamente operada no mesmo hospital, para retirar o material de osteossíntese que havia sido implantado nas pernas.
15 A autora andou 414 dias em tratamento ambulatório, fez 64 viagens de ambulância de Paços de Ferreira ao hospital de Penafiel e vice-versa e esteve 32 dias internada no Hospital.
16 Ficou com as seguintes sequelas:
cicatriz na face externa do braço esquerdo, no seu terço superior, medindo cerca de 3 cm por 1 cm de superfície;
cicatriz na face externa da raiz da coxa direita, rectilínea, de direcção vertical, medindo cerca de 14 cm de comprimento por 0,5 cm de largura;
cicatriz na face externa do terço distal da coxa direita rectilínea, de direcção vertical, medindo cerca de 9 cm de comprimento;
cicatriz na face anterior do joelho direito, de direcção horizontal, medindo cerca de 4 cm de comprimento;
cicatriz na face externa da raiz da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 13 cm de comprimento;
cicatriz na face externa do terço médio da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 5 cm de comprimento;
cicatriz na face externa do terço distal da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 3,5 cm de comprimento;
cicatriz na região púbica, de direcção horizontal, medindo cerca de 11 cm de comprimento;
encurtamento aparente do membro inferior direito de cerca de 1,5 cm, quando comparado com o contra lateral, ambos medidos entre a espinha ilíaca antero-superior e o maléolo interno;
sobreponível mobilidade dos diferentes segmentos dos membros inferiores, quando comparado o direito com o esquerdo;
17 As lesões sofridas pela autora demandaram 359 dias de doença com impossibilidade total para o trabalho.
18 Teve mais 30 dias de impossibilidade para o trabalho, quando teve de remover o material de osteossíntese das pernas.
19 À data do acidente, a autora estava grávida de 9 meses, tendo, como consequência directa e necessária do mesmo, abortado e perdido o seu filho, do sexo masculino, já totalmente formado, sem deformidade e aleijão, com peso de 3,495 kg e comprimento de 0,515 metros.
20 O feto seria um rapaz do qual a autora se orgulharia, sendo o seu primeiro filho.
21 Com o óbito do filho, a autora sofreu, sofre e sofrerá toda a sua vida, dores, angústia, tristeza, falta de vontade de viver, ansiedade, vazio existencial e carência afectiva, porque não esquecerá o filho que tanto desejava.
22 O feto sofreu lesões traumáticas meníngicas que, associadas aos sinais gerais de asfixia, lhe causaram a morte, sendo que, entre a data do acidente e a morte do feto mediaram várias horas.


23 A autora trabalhava para os dois primeiros réus no “Convívio”, angariando clientes e motivando-os ao consumo, durante as 22H30M e as 4H00M, recebendo dos réus a quantia de € 20,00 por noite, ao que acrescia metade do lucro auferido pelos réus com a venda de bebidas alcoólicas aos clientes, o que era, em média, € 25,00 por dia, sendo que isto acontecia seis noites por semana.
24 A autora, como consequência directa e necessária das sequelas atrás indicadas, ficou a padecer de IPP de 10%.
25 A autora tinha conseguido aquele emprego face à sua idade, ser bem constituída, bonita, com fácil relacionamento e empatia com jovens, que eram a maioria dos clientes do “Convívio”.

26 Em virtude das lesões e sequelas atrás referidas, a autora sofreu e sofrerá ainda dores, insónias, depressão, mal-estar, tonturas, ansiedade e vergonha de si própria, não pode estar de pé, pois cansa-se rapidamente, claudicando no andar, o que envergonha e impede de sair de casa e frequentar lugares que gostaria e a que estava habituada, com a frequência usual.
27 A autora não tem namorado.
28 Em consequência do acidente, com as despesas de transportes de ambulância, a autora despendeu € 1.012,26.
29 O veículo ...-...-BV não se encontrava seguro à data dos factos.


III
Apreciando

recurso do réu FGA

A O recorrente suscita a questão de que a Relação não podia ter alterado a resposta ao quesito 11º de “não provado” para “provado”, dado que faltou o meio de prova que a lei exige para a demostração da falta de seguro.
A primeira observação a fazer é a de que aquele Tribunal não deu, pura e simplesmente, como assente a matéria constante do dito quesito, antes respondeu de forma restritiva à pergunta formulada na base instrutória – “O veículo ...-...-BC não tinha sido objecto de um seguro?” – respondendo que “O veículo ...-...-BV não se encontrava seguro à data dos factos”.
De qualquer modo, sempre se porá a questão de saber se tal alteração poderia ser feita.
Antes do mais, convirá consignar que o STJ apenas pode sindicar a matéria dado por assente pelas instâncias, quando estiver em causa a força probatória de um meio de prova, ou a necessidade legal de certo meio de prova – artº 722º nº 2 e 729º º 1 do C. P. Civil - .
No caso em apreço, fizeram as partes – autora e FGA – diversas diligências no sentido de se saber, através da seguradora, da data em que o seguro de responsabilidade respeitante ao BV, deixara de ser válido. Foi com base nas resposta obtidas que a Relação respondeu ao referido quesito.
O contrato de seguro é um contrato formal que se prova pela apólice, forma ad substantiam do mesmo contrato. No entanto, a sua resolução ou anulação pode carecer de meio de prova suplementar, pois pode não resultar daquela apólice. E, neste caso, não se impõe que esta prova dependa legalmente de certo meio de prova.
É certo que a lei estabelecia já um regime de pagamento dos prémios dos contratos de seguros, vigorando ao tempo o DL 105/94 de 23.04, o qual nos seus artºs 4º e 5º sujeitava a resolução do contrato, por falta de pagamento de prémio ao cumprimento de certas formalidades por parte da seguradora, nomeadamente, o envio de um aviso ao tomador, com a indicação da data do pagamento do prémio, designadamente a data a partir da qual o contrato seria automaticamente resolvido. Contudo, o entendimento por parte do recorrente de que o incumprimento pela seguradora da notificação para juntar o aviso implica dever concluir-se pela não existência deste, com a consequência de dever-se considerar válido e eficaz o contrato de seguro, não pode aceitar-se. Como já decidiu este Supremo, em Ac. de 01.02.05, se, perante o DL 162/84 de 18.05, antecessor do D 105/94, se poderia defender a natureza de formalidade ad substantiam do aviso de recepção, da carta registada que comunicava a suspensão da garantia decorrente do seguro, tal não é defensável no domínio deste último diploma, podendo as seguradoras demonstrar o cumprimento do ónus de envio do aviso por qualquer forma, nomeadamente por intermédio de prova testemunhal. A 2ª instância não estava, pois, vinculada a determinado meio de prova para responder ao quesito 11º.
Deste modo, é insindicável pelo STJ a convicção da Relação de que, na data do acidente, o veículo não estava coberto por seguro válido, uma vez que não ocorre nenhuma das hipóteses dos aludidos artº 722º e 729º do C. P. Civil.

B Suscita também o recorrente a questão de que o réu CC foi indevidamente absolvido.
Refere que sobre este réu impendia a obrigação de segurar o veículo, na qualidade de seu proprietário, pelo que deveria ter sido condenado nos mesmos termos em que o foram o recorrente e a ré BB e solidariamente com eles.
A decisão da Relação, na parte em que absolve um dos réus do pedido, não é objectivamente desfavorável ao FGA, já que em relação a este não afecta a sorte da demanda. Logo, essa absolvição, não prejudicando o Fundo, não lhe confere legitimidade para recorrer, conforme o artº 680º nº 1 do C. P. Civil, que só permite o recurso por parte de quem for prejudicado.
Coisa diferente se passa com o credor que vê na condenção solidária dos devedores um reforço da garantia patrimonial do seu crédito. Do lado passivo, porém, o devedor solidário, pelo facto de existir um outro devedor, não vê mitigada a sua obrigação de prestar.
Pelo que não se conhece desta pretensão do réu recorrente.

C As demais questões postas pelo FGA no seu recurso, referem-se à quantificação das indemnizações atribuídas à autora a título de danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais, bem como à determinação do dies a quo na fixação dos juros moratórios.
Essas questões integram o acervo temático que delimita o recurso da autora, pelo que, sendo questões comuns a ambos os recursos, delas será feita uma análise conjunta, englobando as razões de cada um dos recorrentes.

recurso da autora

D A autora reclama uma indemnização pela perda do direito à vida do seu filho nado-morto, em consequência das lesões sofridas no ventre materno e que tiveram como causa o acidente em apreço.
A Relação negou o aludido direito, fundando-se no disposto no artº 66º do C. Civil, que determina que a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida e no facto dos direitos que a lei confere aos nascituros dependerem do seu nascimento. Assim, concluiu que, uma vez que o filho da autora morreu no seu ventre, não podia beneficiar de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório.
A indemnização por falecimento devido a acto ilícito, a reparação do chamado direito à vida tem sido aceite pela jurisprudência deste STJ, embora os recortes jurídicos de tal direito sejam ainda polémicos. Em qualquer dos casos, porém, sempre se terá de entender que esse direito indemnizatório se reporta à morte de uma pessoa jurídica singular, pelo que, a se admitir que a personalidade jurídica só surge nos termos do citado artº 66º, então, a morte do feto não é indemnizável nestes termos, como decdiu a 2º instância. Neste sentido o Ac. STJ de 25.05.85 – RLJ 3795 185 - .
Esta posição faz parte da nossa tradição jurídica, uma vez que outra não era a posição do C. de Seabra:
artº 6º - “A capacidade judiciária adquire-se pelo nascimento; mas o indivíduo, logo que é procriado, fica debaixo da protecção da lei, e tem-se por nascido para os efeitos declarados no presente código.”
artº110º - “Só é tido por filho, para os efeitos legais, aquele de quem se prove, que nasceu com vida e com figura humana.”
artº 1.479º - “Os nascituros podem adquirir por doação, contanto que estejam concebidos ao tempo da mesma doação e nasçam com vida.”
artº 1776º - “Só podem adquirir por testamento as criaturas existentes, entre as quais é contado o embrião.
§ único. Reputa-se existente o embrião, que nasce com vida e figura humana, dentro dos trezentos dias, contados desde a morte do testador.
E é neste sentido que parecem ir Gomes Canotilho e Vital Moreira quando escrevem – Constituição nota IV ao artº 24º 175 - :
“A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo? É nesse sentido que aponta a redacção do nº 1. Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa,... a vida intra uterina. (bold e sublinhado nossos)”.
A questão terá de ser determinada em sede da jurisprudência nacional, uma vez que a posição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tal como resulta da sua decisão de 02.06.04 é a seguinte:
“No plano europeu, o Tribunal observa que a questão da natureza e do estatuto do embrião e/ou do feto, não é objecto dum consenso...apesar de se verem surgir elementos de protecção deste/destes, a propósito dos progressos científicos e das consequências futuras da pesquisa sobre as manipulações genéticas, as procriações medicamente assistidas ou das experiências com o embrião. No máximo, pode-se encontrar como denominador comum dos Estados a pertença à espécie humana; é a potencialidade deste ser e a sua capacidade em tornar-se uma pessoa, a qual é aliás protegida pelo direito civil em grande número de Estados, como em França, em matéria de sucessões ou de liberalidades, mas também no Reino Unido...que devem ser protegidas, em nome da dignidade humana, sem para isso criar “uma pessoa” que teria um “direito à vida”, no sentido do artº 2º”.
Para concluir “...o Tribunal está convencido de que não é desejável, nem mesmo possível actualmente responder em abstracto à questão de saber se a criança por nascer é uma pessoa”.
Exposto o tema deste modo, pareceria ele de fácil solução face às normas da lei ordinária. O nascituro, que como tal falecia, não teria tido personalidade jurídica, não podendo ser titular de qualquer direito, como, no caso em apreço, do direito à vida.
E No entanto, há que reconhecer a existência de correntes doutrinais que, valendo-se do nº 1 do artº 24º da Constituição, que prescreve a inviolabilidade da vida humana, arguem de inconstitucional o artº 66º. O surgimento da personalidade jurídica seria assim reconduzível ao momento da concepção.
Para Mário Emílio F. Bigotte Chorão – Estudos em Homenagem Ao Professor Doutor Soares Martinez - , a interpretação do artº 24º nº 1 feita pelo Tribunal Constitucional tem sido insatisfatória na medida em que - Acs. nºs 25/84 de 19.03.84 e 85/85 de 29.05.85 - , entende que “a vida pré-natal é protegida, não a título de direito subjectivo do nascituro, que carece de personalidade jurídica, mas como mero valor ou bem objectivo...que o legislador ordinário pode subpor a certos direitos ou interesses constitucionalmente tutelados (vida, saúde, dignidade e liberdade da mulher, qualidade de vida, paternidade e e maternidade conscientes).”
Refere ainda que “Neste debate, só raramente se situa o problema da identidade do embrião num plano supralegal e de fundamentação metafísica.”
E conclui: “Na negação da personalidade jurídica ao conceptus repercutem-se profundamente diversos factores: os preconceitos legalistas e positivistas presentes na codificação e na dogmática jurídica dos dois últimos séculos; a concepçãp normativo-kelseniana; a chamada “cultura da morte” muito influente muito influente nos meios da Esquerda tradicional, comunista e socialista, e em certa mentalidade do radicalismo liberal, como se acaba de ver, uma vez mais, na recente polémica em Portugal, sobre a liberalização do aborto.”

Contrapõe a adopção de um conceito de personalidade jurídica singular fundado no conceito natural ou ontológico de pessoa humana (ubi persona naturalis, ibi persona iuridica), reconhecendo-a como qualidade inata e direito natural do homem.
Para Pedro Pais de Vasconcelos – Teoria Geral do Direito Civil 2007 73 – “O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.
A protecção jurídica que a lei lhe dá não é apenas objectiva. Se o fosse, o seu estatuto não seria diferente daquele que é próprio das coisas ou animais especialmente protegidos...O nascituro não é, pois, objecto do direito. Como pessoa humana viva, o nascituro é pessoa jurídica. A sua qualidade pessoal impõe-se ao Direito, que não tem o poder de negar a verdade da pessoalidade, da hominidade, da humanidade do nascituro. Não pode, pois, deixar de ser reconhecido, pelo Direito, ao nascituro a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.(sublinhado nosso).
Acaba por preconizar uma interpretação do artº 66º no sentido de se referir apenas à capacidade de gozo.
Para Menezes Cordeiro existe um direito à vida do nascituro, referindo que as razões que, conforme o artº 24º da Constituição, justificam o direito à vida das pessoas em geral, são as mesmas que devem fundamentar o direito à vida do nascituro.


F Quid juris?

Sublinhámos uma afirmação de Pedro Pais de Vasconcelos, por entendermos que contém ela uma indicação metodológica relevante. Diz aquele ilustre Professor que a qualidade pessoal do nascituro impõe-se ao Direito, que não tem o poder de a negar. Concordamos que o Direito está submetido a realidades sociais ou naturais básicas que aquele não pode afastar e que é em conformidade com elas que pode ser erguido o ordenamento jurídico.
Vejamos, por isso, qual é o ordenamento natural em que todas estas ideias se forjam.
Sobre a origem da dignidade humana é posível descortinar duas teses principais. A espirtualista de inspiração cristã e a laica ou social assente no conceito de cidadania.
Para a primeira o homem tem uma essência espiritual, presente desde o momento da concepção, pelo que é impossível não reconhecer a existência de uma pessoa, em toda a sua dignidade a partir desse momento.
Para a segunda, agnóstica quanto à fundamentação metafísica da primeira, a dignidade humana deriva do facto de todos os homens e mulheres serem por igual livres e fraternos, pelo que a personalidade só pode existir quando surje um novo centro de imputação de valores viável e autónomo, como todos os outros, um novo cidadão ou cidadã ou seja, quando ocorre o nascimento. É a partir daí que a dignidade da cidadania se impõe. E, consequentemente, a personalidade. Um nascituro não é certamente apenas uma víscera de sua mãe, mas também não é, de acordo com a lei natural – a lei da natureza – um ente verdadeiramente individualizado, que possa ser considerado um igual das restantes pessoas e a quem possam ser atribuídos os direitos de que estas podem ser titulares.
E numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica não vemos como não possa deixar de prevalecer no campo dos valores esta última tese. E que deve, por essa razão, ser a adoptada pelo Direito. É esta concepção que informa a tradição jurídica dos dois últimos séculos e que está mais bem preparada para enfrentar os problemas éticos que o desenvolvimento da engenharia biológica coloca. Porque capaz de admitir que eventualmente se possam sobrepor outros valores àquele que o feto sempre representará. Compreendemos a angústia dos defensores da tese espirtualista, ao terem de assumir a defesa da personalidade e espiritualidade de um embrião manipulado geneticamente, congelado, ou duplicado. Mas o problema é metafísico não social.
A vida uterina é preciosa, deve ser defendida como promessa de um ser humano e nessa medida está abrangida pela norma do nº 1 do artº 24º da Constituição. Mas nos termos da citação de Gomes Canotilho e Vital Moreira atrás consignada, de vida ainda não integrada numa pessoa. E, salvo o devido respeito, é redutor dizer que esta protecção “objectiva” da vida uterina é equiparável à protecção em especial de certas coisas ou animais, como faz Pedro Pais de Vasconcelos. Talvez haja maior afeição por um feto, quando se o considera simplesmente na sua real potencialidade biológia e humana, do que quando se lhe atribui em abstracto pretensos direitos e faculdades, que o tornam refém de ideologias e princípios, que, historicamente, nem sempre se terão traduzido na melhor defesa dos reais interesses do nascituro. Como nos casos doutrinalmente designados por wrong birth, ou seja, quando em nome dessa humanidade do feto não se podia impedir que viessem ao mundo seres doentes e condenados ao sofrimento.
Sublinhe-se que não se trata de uma visão ideológica ou parcelar, porque unicamente se funda nos valores basilares que devem fundar um Estado de Direito, à luz do que pensa e sente, actualmente, a comunidade dos cidadãos.
Antunes Varela – Estudos Em Homenagem cit. 633 - defende-a do seguinte modo: “Ora, a preferência da lei portuguesa (artº 66º nº 1), da lei alemã (artº 1º do Cód. Civil alemão) e da generalidade das legislações, pelo momento do nascimento com vida (em detrimento do instante da concepção, na evolução do embrião humano), não pode considerar-se uma opção arbitrária, nem antinatural ou artificial do legislador, como pretende Ernst Wolf, por três razões fundamentais:
a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião;
b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;
c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da autonomização fisiológica perante o organismo da mãe, o marco cravado na lei para o reconhecimento da personaldade do filho.

É a partir desse momento que surge compreensivelmente aos olhos da lei um novo sujeito de direito, um novo centro de imputação dos valores fundamentais que integram a imensa dignidade da pessoa humana.

Temos assim que a fixação pelo artº 66º nº 1 do C. Civil da personalidade jurídica singular com o nascimento não é incompatível com o comando do artº 24º nº 1 da Constituição, uma vez que este preceito, ao considerar a vida humana inviolável, está a impor a protecção genérica da gestação humana, sem considerar o nascituro como um centro autónomo de direitos.

No caso dos autos é impossível, por tudo o que fica exposto, reconhecer ao filho da autora um direito à vida susceptível de ser indemnizado, uma vez que faleceu ainda antes de adquirir a qualidade de pessoa jurídica, não podendo, assim, ser titular de qualquer direito.

O dano morte em causa é indemnizável, mas em sede de reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela recorrente. Esta questão foi versada no acórdão da Relação, mas não foi levantada pela autora no presente recurso, pelo que dela não se pode conhecer, para efeitos do eventual aumento da quantia fixada pela Relação. Será adiante tratada, mas apenas ao apreciar a pretensão do réu recorrente de que deveria ser reduzida.
Pede igualmente a autora uma indemnização pelo sofrimento do feto entre a ocorrência da lesão e a sua morte.
Para além de ser impossível atribuir àquele um direito à reparação por carecer de personalidade jurídica, conforme atrás consignado, segue-se que nem tal sofrimento se encontra demonstrado na matéria de facto assente - cf. ponto 22 dos factos assentes -.

H Outra questão, comum a ambos os recursos, é a do montante do dano patrimonial futuro.
A autora pugna por um montante de € 150.000,00, o Tribunal da Relação fixou-o em € 100.000,00 e o réu FGA pretende a sua fixação em € 40.000,00.
A orientação jurisprudencial dominante nesta matéria é a de que a reparação do dano futuro que decorre da incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado irá deixar de auferir, mas que se extinga no final do período da vida provável do lesado. Para alguns apenas o final da sua vida activa. Temos para nós que se deve atender ao decurso de toda a sua vida, uma vez que durante toda ela poderia o mesmo lesado gerar rendimentos.Trata-se de um difícil prognóstico, pois assente em bases pouco seguras. Recorde-se que sendo reparáveis os danos em concreto, no caso do dano futuro será reparável aquele que se mostre provável e não meramente possível. Desta forma, a jurisprudência vem acentuando que o legítimo recurso a tabelas matemáticas ou a critérios financeiros deve ser moderado ou corrigido pelos critérios do bom senso que só a equidade pode fornecer.
E no caso concreto é flagrante que as tabelas não podem ser aplicadas. A actividade profissional da autora, de “alterne”, como vem provado é uma actividade que não podereria ultrapassar no máximo duas décadas. Por outro lado, há que reconhecer que ficou totalmente impedida de a exercer. Com efeito, tendo conseguido o dito emprego, como se demonstrou, devido ao seu bom aspecto e à capacidade de relacionamento – ponto 25 dos factos assentes – dificilmente poderá mantê-lo, quando passou a ser pessoa depressiva, sofrendo de mal estar e tonturas, não podendo estar de pé muito tempo e claudicando no andar – ponto 26 - . É também relevante o facto de ter apenas 20 anos, pelo que as perdas económicas reportar-se-ão a muitas décadas, sendo um elemento negativo na angariação de rendimentos a IPP de 10% de que ficou a padecer.
Tudo ponderado, julga-se equilibrada a indemnização arbitrada em 2ª instância de € 100.000,00 que se mantém.
Com o que se desatendem as pretensões de ambos os recorrentes.

I Quanto aos danos não patrimoniais, a autora, não pondo em causa a indemnização que lhe foi arbitrada no tribunal recorrido - € 10.000,00 pelo desgosto moral com a perda do filho e € 20.000,00 pelos sofrimentos físicos e morais que padeceu e continuará a padecer – pretende, agora, que lhe seja acrescentada uma outra quantia indemnizatória “autónoma” no valor de € 45.000,00, referente ao dano estético de afirmação pessoal e sexual. O FGA defende que as quantias fixadas sejam reduzidas para, respectivamente, € 5.000,00 e € 10.000,00.
Este pedido pedido nunca antes fora autonomizado pela autora – nem na petição inicial e no pedido aí formulado, nem no recurso para a Relação – . Por isso, dele não tratou, nem o podia fazer, o tribunal de 2ª instância. Logo, a questão configura-se como questão nova de que se não pode conhecer. Aliás, tendo a Relação considerado o dano estético para efeitos de arbitrar a citada quantia de € 20.000,00 e não tendo a recorrente impugnado essa quantia, haveria uma duplicação, se se tivesse de calcular mais uma outra reparação para tal dano.
Quanto à pretensão do réu recorrente de que aqueles dois montantes das indemnizações por danos não patrimoniais sejam reduzidos para metade, não vemos que lhe assista razão: a perda de um bebé de termo deve ser equiparada, em termos de dor materna à perda de uma criança; a dor duma jovem de 20 anos que vê a sua mocidade seriamente abalada em termos de aparência, saúde física e bem estar psicológico tem de se considerar muito séria.
Nestes termos, improcedem ambos os recursos no que respeita à indemnização por danos não patrimoniais.

J Finalmente, colocam os recorrentes a questão do momento a partir do qual se vencerão os juros moratórios.
De acordo o o nº 3 do artº 805º do C. Civil, nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou risco, a regra é a de que o devedor se constitui em mora desde a citação.
Trata-se de normativo que visou compensar a demora na fixação das indemnizações, com a consequente desvalorização monetária, tendo em conta que, tratando-se de obrigações ilíquidas, a mora só podereria existir a partir da decisão. Tudo isto ocorreu, quando a jurisprudência ainda não tinha admitido o princípio da actualização do montante do dano liquidado.
No entanto, se o juiz procede a essa actualização, a concessão de juros moratórios desde a citação, significará uma duplicação no ressarcimento, o que contraria o critério da diferença do artº 566º nº 2.
Assim, em casos em que, pela via da actualização, seja concedida a reparação integral dos danos até à decisão actualizadora, a aplicação literal do nº 3 do artº 805º terá de ser afastada.
Este entendimento foi consagrado por acórdão uniformizador deste Supremo – 4/2000, de 09.05.02, DR I Série-A de 27.06.02 – que estabeleceu a seguinte norma interpretativa:
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs. 805º nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º nº 1 também do Código Civil,a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação.
No caso em apreço, nada foi dito na primeira decisão condenatória – a da Relação – sobre o conteúdo a actualização das indemnizações.
De qualquer modo, estranho seria que, sendo os montantes dos danos futuros e dos não patrimonias fixados com o recurso à equidade, o julgador não tivesse feito apelo a critérios actuais.
Acresce que a confirmação por este STJ dos valores determinados em 2ª instância dependeu de um critério actualizado.
O que tudo nos leva a ter de considerar como tendo sido feita a actualização desses montantes na decisão em causa.
Deste modo, os juros sobre as quantias respeitantes aos danos futuros e aos danos não patrimoniais seriam apenas devidos a partir da data do acórdão impugnado. Contudo, como o recorrente FGA pediu que sejam contados a partir da decisão em 1ª instância e não sendo possível a reformatio in melius – artº 864º nº4 do C. P. Civil - , é a partir de tal sentença que se fixam tais juros.
Já quanto aos € 31.972,56 de danos patrimoniais, que correspondem a valores respeitantes a perdas remuneratórias e a despesas com os tratamentos, que não foram actualizados, os juros moratórios são de contar a partir da citação.

Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso do FGA e improcedente o recurso da autora e, em consequência:

Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de € 130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vençam a partir da sentença de 1ª instância, no mais confirmando o mesmo acórdão.

Custas pelas partes na proporção do decaimento.

Lisboa, 9 de Outubro de 2008

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos
João Bernardo
Santos Bernardino (com voto de vencido)

_________________________

VOTO DE VENCIDO:

No projecto de acórdão que, como relator, oportunamente elaborei, defendi soluções diferentes para algumas das questões suscitadas nos recursos, relativamente às quais fiquei vencido, mas não convencido.
Assim:

A) Quanto à indemnização, peticionada pela recorrente, pela perda do direito à vida do filho, nado-morto, continuo a defender o que então escrevi (e que, apesar da sua extensão, terei de reproduzir na sua integralidade, para que resulte compreensível o meu entendimento).
Eis o que constava do projecto de acórdão:

Reclama, antes de mais, a autora/recorrente indemnização pela perda do direito à vida do seu filho, nado-morto em consequência das lesões sofridas no ventre materno, produzidas pelo acidente.
Direito que a Relação lhe negou, fundada no disposto no art. 66º do Código Civil (CC): a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida, e os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento; “e uma vez que o filho da autora estava já morto no seu ventre, não beneficia de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório”.
A questão, convenhamos, não é de fácil solução.
A solução adoptada pela Relação é a defendida por uma parte significativa da doutrina portuguesa – que integra nomes como MOTA PINTO, CASTRO MENDES, P. LIMA/A. VARELA, DIAS MARQUES, CARVALHO FERNANDES e EWALD HÖRSTER – que, sensível ao teor literal do art. 66º, nega a personalidade jurídica ao nascituro.
Apenas quando venha a nascer com vida pode adquirir direitos, v.g., os direitos atribuídos, antes do nascimento, por herança ou doação.
Não deixa, porém, de assinalar-se que alguns desses autores admitem, fora dos casos expressamente previstos, em que a lei – designadamente o CC, em matéria de doações ou sucessões, ou de perfilhação – reconhece direitos aos nascituros, que estes possam ser indemnizados, após o nascimento, por danos físicos ou psíquicos sofridos no ventre materno, exercendo o respectivo direito por intermédio dos seus representantes (1)
Esta posição doutrinária, denegatória da personalidade jurídica do nascituro, começa, porém, a ser posta em causa por uma igualmente forte corrente doutrinal, que defende, com maior ou menor ênfase, a personalidade jurídica do nascituro já concebido. Nomes como LEITE DE CAMPOS, OLIVEIRA ASCENSÃO, MENEZES CORDEIRO, PAULO OTERO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS surgem como arautos deste novo entendimento.
Particularmente impressiva é a posição deste último Professor, que, de adepto da construção tradicional acima referida, surge agora como convicto defensor da tese de que a personalidade tem início na concepção.
Para PAIS DE VASCONCELOS (2), é com a concepção que se inicia a vida humana, de que o nascimento é apenas mais uma etapa. Tendo vida e substância humana desde a concepção, o nascituro tem a qualidade de pessoa humana. A personalidade é uma qualidade – é a qualidade de ser pessoa. Não é algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é um dado extrajurídico que se impõe ao Direito, que este se limita a respeitar ou a constatar, algo que se situa fora do alcance do poder de conformação social do legislador.
O nascituro é um ser humano vivo, com toda a dignidade própria da pessoa humana. A protecção jurídica que a lei lhe confere não é apenas objectiva – o nascituro não é objecto do direito, não é uma coisa especialmente protegida. Como pessoa humana viva, é pessoa jurídica: o Direito não pode deixar de lhe reconhecer a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.
É inegável, pois, a personalidade jurídica do nascituro desde a sua concepção.
O art. 66º do CC deve, segundo este autor, ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica.
Não obstante tudo quanto vem referido, PAIS DE VASCONCELOS acaba por concluir que o nascituro, se não chegar a nascer com vida, é havido pela lei – pelo n.º 2 do mencionado art. 66º – como não tendo chegado a existir. Os direitos de personalidade de que era titular, enquanto pessoa pré-nascida – o direito a viver, o direito à integridade física e outros – extinguem-se com a extinção da personalidade.
Não deixa, porém, de reconhecer, noutro lugar, que a solução da desconsideração da vida de quem morreu antes do nascimento pode ser contestada no domínio dos princípios (3) .
O Prof. MENEZES CORDEIRO, por seu turno, conclui também pela existência do direito à vida do nascituro, afirmando mesmo que o reconhecimento desse direito é praticamente pacífico.
O art. 24º da Constituição constitui, para este autor, a base jurídico-positiva do aludido direito. “As razões últimas que justificam o direito à vida do nascituro são precisamente as que depõem a favor do direito à vida das pessoas em geral” (4) .
E acrescenta que, reconhecido, civilmente, este direito, não oferece dúvidas extrapolar o direito do nascituro à integridade física e moral, sendo indemnizáveis os danos causados ao próprio nascituro (5) ..
O atentado à integridade do nascituro é, assim, um acto civilmente ilícito.
Se dele resulta lesão não letal, o próprio nascituro tem direito a ser indemnizado, após o nascimento – direito que, resultando da lesão uma deficiência permanente, deverá abranger os alimentos necessários, devidamente reforçados, ao longo da vida.
E se da lesão resultar a morte do nascituro?
Antes do nascimento – diz M. Cordeiro – o nascituro tem uma capacidade de gozo limitada ao direito à vida. A sua morte dará lugar a direitos à indemnização por danos morais, funcionando o art. 496º do CC. Além disso, todos os danos patrimoniais provocados aos pais do nascituro deverão ser ressarcidos. Quanto ao nascituro em si: o direito à indemnização do próprio não se constitui.

A questão que nos ocupa pode, porém, ser enfocada de uma outra perspectiva.
Trata-se de saber – não se o nascituro tem ou não personalidade jurídica, se é sujeito de direitos – mas se, e em que medida, ele é, na sua personalidade física e moral, objecto de protecção jurídica.
Ora, a este respeito, logo o n.º 1 do art. 24º da Constituição consagra a inviolabilidade da vida humana.
E não parece haver dúvidas que existe vida humana no nascituro concebido: biologicamente, ele é um ser humano. A ciência contemporânea afirma que a criança concebida é um ser humano, capaz de sensações e sentimentos, um ser que, embora funcionalmente dependa da mãe, é dotado de uma estrutura autónoma.
A vida humana inicia-se com a concepção: “(d)aí em diante, o nascituro desenvolve-se de um modo progressivo e ininterrupto, sem patamares nítidos. O nascimento é apenas mais um facto relevante na vida da pessoa. Não há grande diferença entre a véspera do nascimento e o dia seguinte” (6) .
O preceito constitucional citado não distingue a vida humana extra-uterina da uterina, pelo que deverá considerar-se a vida do nascituro – o ser do nascituro, na linguagem de CAPELO DE SOUSA – como um bem juridicamente protegido, a nível das garantias constitucionais (7)
Mas não só a nível constitucional colhe protecção o bem jurídico «vida» do nascituro. A norma constitucional indicada tem também eficácia civil, no âmbito das relações entre os particulares, atenta a força jurídica que o n.º 1 do art. 18º do diploma constitucional confere aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (entre os quais se conta o direito à vida), direitos estes que (n.º 2 do mesmo preceito) a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição, e apenas na medida do necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
A tutela da personalidade física e moral do nascituro, particularmente vincada no domínio penal – onde se prevêem e sancionam crimes contra a vida intra-uterina e se faz uma enunciação taxativa e restritiva das condições e situações interruptivas da gravidez que excluem a ilicitude do aborto – não deixa de marcar presença no CC, quer concretizada em disposições esparsas (v.g., no art. 1878º/1 – que integra no conteúdo do poder paternal dos pais a representação do nascituro; no art. 1826º/1 – presunção de paternidade relativamente ao filho concebido na constância do matrimónio; nos arts. 1854º e 1855º – perfilhação de nascituro), quer em termos genéricos, no art. 70º, cujo n.º 1 – A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita (...) à sua personalidade física ou moral – não pode deixar de entender-se, até pela sua expressão literal (na sua referência a «indivíduos» e à «personalidade física ou moral»), como abrangendo os nascituros concebidos (8) .
E não vale argumentar em contrário com o disposto no n.º 2 do art. 66º do CC – designadamente com o facto de aí se prever que os direitos que a lei reconhece aos nascituros estão dependentes do seu nascimento.
Como refere R. CAPELO DE SOUSA, na sua obra já citada, que aqui vimos seguindo de perto, se é a própria lei que aí admite reconhecer direitos – sujeitos embora a condição legal – aos próprios nascituros, “isso até justifica a concepção de uma qualquer parcial personificação jurídica dos nascituros, sobretudo se concebidos”. De todo o modo, o que o art. 66º prevê é o começo da personalidade jurídica plena; e, como acima deixámos dito, na esteira do mesmo autor, não é da questão da personalidade do nascituro – da titularidade subjectiva dos direitos que respeitam à tutela dos interesses do nascituro – que agora curamos, “mas apenas de saber se a nossa lei previu a tutela, como bem jurídico, da personalidade física e moral do nascituro” [aí incluído o seu direito à vida], questão a que, face aos normativos acima citados, considerados na unidade do sistema jurídico, parece dever responder-se afirmativamente.
Na verdade, mesmo que se aceite que, face ao art. 66º já citado, o nascituro concebido não tem personalidade jurídica plena, ele é, para efeitos do art. 70º, um ser humano, que, mesmo antes de nascer e após a conformação dos diversos órgãos, “tem movimentos, ouve, vê, sente, dorme e sonha”, é “uma criança em gestação” (9) , que tem direito ao respeito e ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e, consequentemente, a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida e na sua saúde – só sendo possível uma protecção jurídica eficaz e completa dessa personalidade do concebido através da tutela geral conferida por este último preceito, reputando a vida intra-uterina como um bem jurídico autónomo.
E assim, de acordo com o n.º 2 do mesmo art. 70º, as ofensas ou as simples ameaças de ofensa à personalidade física ou moral do nascituro podem ser combatidas através do pedido das providências adequadas às circunstâncias do caso, formulado em procedimento especial previsto nos arts. 1474º e 1475º do CPC; e podem gerar, nos termos da 1ª parte do mesmo preceito, responsabilidade civil, desde que delas tenham resultado danos na personalidade do nascituro e se verifiquem os demais pressupostos, dando lugar, em tais casos, a obrigações de indemnização. Desde logo, “é tutelável a vida do nascituro concebido, sendo ilícito e indemnizável o aniquilamento da sua vida, fora dos casos admitidos taxativamente de interrupção de gravidez fundada em justa e tempestiva indicação legal” (10).
A morte do nascituro confere, pois, direito de indemnização, desde que verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (ou pelo risco).
Está em causa a indemnização por um dano não patrimonial, sendo aplicável o disposto no art. 496º do CC.
Por isso, no caso em apreço, a autora recorrente tem direito a reclamar indemnização, não apenas pelo dano não patrimonial consubstanciado no desgosto, angústia e tristeza que sofreu pela perda do filho – indemnização que, aliás, lhe foi concedida e que, mais adiante, voltaremos a examinar – mas também pelo dano da supressão da vida daquele.
O que está aqui em causa – reafirma-se mais uma vez – é, não a questão da titularidade subjectiva dos direitos respeitantes à tutela do nascituro, não, pois, a aplicação do n.º 2 do art. 66º do CC, mas a tutela do bem jurídico da vida intra-uterina; e este bem jurídico é claramente distinto dos bens jurídicos da afectividade e da espiritualidade dos pais para com os seus filhos concebidos e do inerente sofrimento moral e psíquico pela lesão destes bens.
O n.º 2 do art. 496º do CC, na sua referência inicial («Por morte da vítima»), inclui, não só na letra, sim também no seu espírito, a morte do ser humano concebido.
Por isso, este dano – o dano da supressão da vida do filho nascituro da autora recorrente – é um dano directa e autonomamente indemnizável. Só por esta via o ordenamento jurídico assume totalmente a jurisdicionalização do mais importante dos bens jurídicos, o bem «vida».
A assim não ser entendido – e a ter-se por certo que naquele n.º 2 (e no subsequente n.º 3), o legislador apenas previu a morte do ser humano nascido e com vida – estaríamos perante uma lacuna da lei, um caso omisso: a ausência de regulamentação jurídica para a situação de ofensa, ilícita e culposa ou objectiva, do bem jurídico da vida intra-uterina.
É o que sustenta CAPELO DE SOUSA, no comentário, discordante, que faz ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 25.05.85 (11) , que, numa situação de facto em tudo idêntica à que é objecto dos presentes autos, entendeu não ser devida aos pais indemnização pela supressão da vida do feto.
E então, “por integração (art. 10º CC), aplicar-se-iam a essa hipótese os n.os 2 e 3 do art. 496º CC, por no caso omisso procederem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Com efeito, não pode ter-se como irrelevante, em termos de responsabilidade civil, uma ofensa, ilícita e culposa ou baseada no risco, do bem jurídico da vida intra-uterina; o direito à respectiva indemnização deverá caber às pessoas referidas no n.º 2 do art. 496º, também elas numa proximidade afectiva maior com o concebido; o montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente e devem ser compensados não só a supressão da vida intra-uterina sofrida pelo concebido mas também os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares referidos no n.º 2 do art. 496º CC, na sua esfera pessoal” (12).
Por qualquer uma das duas vias consideradas, a indemnização do dano não patrimonial da supressão da vida do nascituro – no caso, do filho nascituro da autora – sempre terá lugar.
Seria, ademais, estranho e contraditório que fossem indemnizáveis os danos à integridade física do concebido, quando este venha a nascer com vida – o que a generalidade da doutrina e a mais recente jurisprudência vêm afirmando sem reservas – e não o fosse o dano da sua morte, “pois então seria premiado o assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que tão só lhe produzisse danos corporais. (13) .”
Se, por força da gravidade das lesões, o concebido morre no ventre materno, não há lugar a indemnização; se, por lesões menos graves, resiste â morte, e vem a nascer com vida, morrendo uma hora (ou mesmo uns minutos!) depois, em consequência das lesões sofridas antes do nascimento, já haverá lugar a indemnização.
Só por puro preconceito se pode justificar esta diferença de tratamento.
O art. 66º do CC, já o dissemos, não é – não deve ser – para aqui chamado.
De todo o modo, a interpretação que de tal normativo foi feita no acórdão recorrido – e a que já se fez expressa referência – negando a tutela jurídica da vida do nascituro, é inconstitucional, porque violadora do disposto no art. 24º da Constituição, pelo que sempre seria de rejeitar.
No direito português – escreve DIOGO LEITE DE CAMPOS (14) – “o direito à vida («naturalmente» desde a concepção) está consagrado na Constituição da República, no número 1 do artigo 24º”.
E outro autor acrescenta:
“O artigo 66º padece de demasiadas anomalias para dele se retirar, em definitivo, um comando sobre o início da personalidade. Prudente será deixar a questão em aberto, bastando-nos o artigo 24º da Constituição sobre a inviolabilidade da vida humana” (15) .
Há mesmo quem defenda que o n.º 1 do art. 66º foi revogado pelo artigo 24º/1 da Constituição (16) – norma que, como se sabe, lhe é temporalmente posterior.
“As normas contidas na maioria das legislações que vinculam o início da personalidade ao nascimento, estão, portanto, naturalmente gastas e ultrapassadas” (17) .
“O artigo 66º do Código Civil, para ser compatível com a Constituição, com as coordenadas axiológicas do sistema e com a natureza das coisas, tem de ser interpretado como referido, não à personalidade jurídica, cuja existência, início e termo são extra e supra legais, mas antes à capacidade jurídica, como fazia o seu antecessor artigo 6º do Código Civil de 1867 e o § 1 do BGB” (18) .
De tudo decorre – repete-se – a existência, no caso vertente, do direito da recorrente a ser indemnizada pelo dano da supressão da vida do nascituro seu filho, direito que flui do disposto no n.º 2 do art. 496º do CC, como também já se deixou assinalado (19) .
Importa, pois, fixar o valor da indemnização ou da reparação por este dano.
No dizer de DIOGO LEITE CAMPOS, o direito à vida é um direito «ao respeito» da vida perante as outras pessoas. É um direito «excludendi alios» e, só nesta medida, é um direito. É um direito a exigir um comportamento negativo dos outros. Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano – a morte – superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica.
O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros (20).
O montante da indemnização – que cabe à recorrente, não por via sucessória, mas por direito próprio, nos termos do preceito ultimamente citado – deve ser calculado segundo critérios de equidade (art. 496º/3 do CC).
Para LEITE DE CAMPOS, o dano da morte é um dano não mensurável, pois não pode comparar-se a vida com qualquer outro bem cujo valor seja conhecido e que possa constituir a sua contrapartida. O valor da vida é, por outro lado, igual para todas as pessoas, pelo que a indemnização não deve aferir-se pelo custo da vida humana para a sociedade ou para os parentes da vítima, nem pelo seu valor para a sociedade e para os que dependem da vítima, mas sim pelo valor da vida para a vítima enquanto ser. O prejuízo é o mesmo para todos os homens: logo, a indemnização deve ser a mesma para todos (21).
É claro que este entendimento de LEITE DE CAMPOS, de aceitar em termos gerais, carece de uma certa precisão.
O simples facto de o art. 496º mandar atender, em qualquer caso, às circunstâncias referidas no art. 494º, é bastante para mostrar que a indemnização pelo dano da morte não tem um valor fixo, não tem de ser igual em todos os casos e para todas as pessoas.
Tal entendimento é, todavia, tendencialmente correcto: a ideia-força, o ponto de partida para a determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida, deve ser o de que aquilo que importa ter em conta é a própria vida em si, como bem supremo, base de todos os demais e igual para todas as pessoas – o que vem na linha do pensamento de LEITE DE CAMPOS e parece igualmente ressaltar de recente acórdão deste Tribunal (22) – funcionando as circunstâncias referidas no art. 494º do CC como factores de correcção, para melhor adequação da indemnização às particularidades do caso concreto, devendo, designadamente, na valoração “(d)as demais circunstâncias do caso”, ponderar-se que a vida humana intra-uterina é uma vida em gestação, dependente, até ao termo desta, do organismo da mãe.
Quer-se com isto dizer que, se biologicamente o nascituro é um ser humano, uma criança em formação, sociologicamente parece ainda não o ser em medida igual à de um ente já formado, a uma criança já em vida de relação, o que justificará uma diferente valoração do direito à vida de um e de outro ser.
No caso em análise, a vida que se perdeu foi a de um ser do sexo masculino, no termo da gestação, já totalmente formado e saudável, prestes a deixar o ventre materno e fazer a sua entrada no mundo exterior.
Tendo em conta os padrões de indemnização que, na valoração deste dano, este Supremo Tribunal tem acolhido nas suas mais recentes decisões dano (23) , fixando a sua indemnização em valores que rondam os € 50.000,00, considera-se, para o caso em apreço, que as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida justificam a fixação da indemnização em € 40.000,00.

B) Quanto à indemnização atribuída à autora pelo dano patrimonial futuro, fixado pela Relação em € 100.000,00, e que aquela pretendia fosse fixada, por este Supremo Tribunal, em € 150.000,00, ao contrário do FGA, que entendia ajustada a sua fixação em € 40.000,00:

A tese que fez vencimento, neste Supremo Tribunal, entendeu equilibrada a indemnização arbitrada em 2ª instância, e, por isso, manteve o fixado montante de € 100.000,00.
Com o respeito – que é elevado e merecido – a tal entendimento, dele discordo em absoluto.
É claro que não é tarefa fácil a fixação da indemnização relativa aos danos futuros.
Vários são os critérios que têm sido experimentados para determinar essa indemnização, sendo que, ultimamente, a nossa jurisprudência vem mostrando preferência e dando acolhimento àquele que repousa na ideia de que a indemnização do dano futuro decorrente de incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado irá deixar de auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida activa, ou seja, um capital que se esgote no fim da vida activa provável da vítima e que seja susceptível de garantir, ao longo desse período, as prestações periódicas correspondentes ao rendimento perdido (24) .
Tal critério cumpre, mas só tendencialmente, o princípio geral válido em matéria de obrigação de indemnização: reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º). Por isso, os seus resultados não podem ser aceites de forma abstracta e mecânica, devendo ser temperados por juízos de equidade (cf. art. 566º/3) – que assentem na idade e tempo provável de vida da vítima, na actividade profissional por esta desenvolvida e no tempo provável da sua duração, nas suas condições de saúde ao tempo do evento, na flutuação futura do valor do dinheiro, etc. – sempre que se mostrarem desajustados relativamente ao caso concreto.
A equidade funciona, pois, como elemento de correcção do resultado que se atinja a partir do aludido critério (ou de outro que, v.g., recorra a tabelas matemáticas e financeiras para o cálculo do dano futuro).
No que concerne à idade que, em tal critério, deve ser considerada como limite da vida activa, tem-se assistido, nos últimos anos, a uma evolução da jurisprudência deste Supremo Tribunal, que, até há pouco tempo, vinha entendendo, relativamente aos trabalhadores por conta de outrem, ser a de 65 anos a idade a ter em conta, por ser essa a que, em condições de normalidade e de previsibilidade, lhes conferiria o direito à reforma e à correspondente pensão.
A situação tende, porém, a alterar-se, em consequência até da muito falada “insustentabilidade do regime da Segurança Social”, que parece perspectivar e exigir um aumento progressivo da idade de aquisição do direito à pensão de reforma, não podendo também olvidar-se o progressivo aumento do tempo médio de vida dos portugueses e o consequente prolongamento, para além dos 65 anos, da sua vida activa.
E, por isso, sensível a essa realidade, a mais recente jurisprudência deste Tribunal (25) vem aceitando como adequado ponderar como limite da vida activa, até ao qual deve ser compensada a perda ou diminuição da capacidade de ganho, a idade de 70 anos.
Todavia, a questão tem, no caso concreto em apreço, particularidades que a afastam das questões de idêntica natureza normalmente trazidas à apreciação dos tribunais.
É que a actividade profissional da autora – trabalhava num Pub/Bar, desempenhando tarefas que, como refere o acórdão recorrido, são conhecidas como de “alterne” – é daquelas em que é, de todo, despropositado supor que possam ser desempenhadas até aos 70 ou até aos 65 anos de idade, cessando inelutavelmente quando o viço da mocidade e a frescura física tornam menos apelativos os serviços das profissionais que a desempenham – o que, em termos de normalidade, não ultrapassa os 35 anos de idade. Está, aliás, provado que “a autora tinha conseguido aquele emprego face à sua idade, ser bem constituída, bonita, com fácil relacionamento e empatia com jovens, que eram a maioria dos clientes” do estabelecimento.
Os critérios e as tabelas usuais não se ajustam, neste caso, ao cálculo da indemnização, relevando aqui, preponderantemente, o juízo de equidade.
Por isso, a Relação pondera, com manifesto acerto, que
Considerando a actividade exercida não é razoável supor que a autora, ao longo da sua vida (até aos 65 anos de idade/esperança média de vida activa), iria ganhar sempre o salário que ganhava à data do acidente.
Considerando a imprevisibilidade dos factores a atender na fixação média salarial, daqui a largos anos, neste tipo de actividade, comummente conhecida como “alternadeira”, onde o “curso normal das coisas”, a evolução do mercado laboral constituem um dado incerto, considerando a idade, a concorrência, as mentalidades, não faz sentido aderir a critérios ou tabelas puramente matemáticas, ou de proporção, mas tão somente pragmáticos e de equidade.
É, pois, fundamentalmente a partir de juízos de equidade, buscando a realização da justiça abstracta no caso concreto, partindo da ideia-força de que a equidade não é arbítrio, pois tem sempre como ponto de partida o direito positivo, que se deve procurar a justa indemnização para o dano em apreço.
À data do acidente a autora recorrente tinha 20 anos de idade.
Auferia, por cada noite de trabalho, o salário de € 20,00, a que acrescia metade do lucro angariado pelos donos do Pub/Bar na venda de bebidas aos clientes – em média, € 25,00 por jornada – e trabalhando seis noites por semana.
Como consequência das lesões sofridas no acidente e das múltiplas sequelas com que ficou marcada, ficou a padecer de IPP de 10%.
Todavia, não ficou provado que tais sequelas a tenham impossibilitado de continuar a exercer as funções que vinha desempenhando e de conseguir arranjar ocupação igual à que vinha exercitando. Os quesitos 31º e 32º – que integravam esta matéria de facto – obtiveram resposta de «não provado», e da fundamentação das respostas sobre a matéria de facto consta mesmo ter resultado “apurado à saciedade que a autora [em Outubro de 2006] continua a exercer a profissão de “alternadeira”, facto confirmado pelos depoimentos do seu padrasto, da sua actual empregadora e de duas outras testemunhas. E, ao contrário do que vem alegado pela própria autora/recorrente, também não se acha provado que esta tenha ficado com uma incapacidade de 50% (ou outra, superior à de 10%) para o exercício dessa profissão.
Tendo presente este quadro factual, e aquilo que acima se deixou enfatizado, surge, a meu ver, como manifestamente exagerada a indemnização arbitrada pela Relação e agora confirmada, como reparação do dano em apreço.
Mesmo o montante proposto pelo FGA não deixa, a nosso ver, de envolver uma certa generosidade, mesmo tendo em conta – ou, sobretudo, tendo em conta – as particularidades do caso concreto.
De todo o modo, não pode este Tribunal, face ao disposto no n.º 4 do art. 684º do CPC, que consagra uma verdadeira regra de proibição da reformatio in melius, baixar do montante que o FGA tem por adequado, segundo a equidade: “o julgamento do recurso não pode melhorar a posição do recorrente (no caso, a do FGA) em termos de lhe conceder mais do que ele solicita” F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 160..
Assim, na questão em apreço, entendo que deveria improceder o recurso da autora e proceder inteiramente o do FGA, o que significaria fixar a indemnização a que a autora tem jus, pelo dano patrimonial futuro, em € 40.000,00.
(A. Santos Bernardino)
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(1) Neste sentido, C. A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., C.ª Editora, 2005, pág. 203, e H. EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Cód. Civil Português, Liv. Almedina, 1992, pág. 299/300..

(2) Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Almedina, 2007, págs. 72 e ss. e 81 e ss.

(3) Autor citado, Direito de Personalidade, pág. 110.

(4) Cfr. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo III, Liv. Almedina, 2004, pág. 278/279.

(5) Ob. e vol. cits., pág. 281

(6) P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral cit., págs. 72/73.

(7) Cfr. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, págs. 157/158..

(8) Cfr. R. CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pág. 158/160..

(9) A. MENEZES CORDEIRO, ibidem, pág. 269.

(10) R. CAPELO DE SOUSA, ibidem, pág. 162/163..

(11) Publicado no BMJ 347/398.

(12) Ibidem, págs. 162/163, em nota de rodapé.

(13) CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pág. 163 (rodapé)

(14) Lições de Direitos da Personalidade, 2ª ed., Coimbra 1995, pág. 58.

(15) A. MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pág. 299.

(16) Cfr. G. A. ÓRFÃO GONÇALVES, Da Personalidade Jurídica do Nascituro, RFDUL 2000, pág. 533.

(17) Cfr. LEITE DE CAMPOS, ob. cit., pág. 42.

(18) Cfr. P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, pág. 112.

(19) Direito que cabe apenas à autora, uma vez que, sendo esta solteira, e não tendo sequer namorado, se ignora, de todo, a identidade do pai do seu filho.

(20) Cfr. autor citado, A Vida, a Morte e a sua Indemnização, no BMJ 365, págs. 5 e ss.

(21) Cfr. obra citada na nota 18, pág. 64 e estudo citado na nota que antecede, pág. 15.

(22) Acórdão de 27.09.2007, Proc. 07B2737, disponível em
www.dgsi.pt.

(23) Citam-se, a título de exemplo, além do referido na nota anterior, os Acórdãos de 12.10.2006 (Proc. 06B2520), de 17.10.2006 (Proc. 06P2775) e de 24.10.2006 (Proc. 06A3021), igualmente disponíveis em
www.dgsi.pt.

(24) Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal, de 25.06.02, Col. Jur.- Acs. do STJ, X, 2, 132, de 19.10.2004 (revista n.º 2897/04, da 6ª Sec.), de 16.12.2004 (revista n.º 3839/04, da 2ª Sec., e o muito recente acórdão de 02.10.2007, Col. Jur.- Acs. do STJ, XV, 3, 68)..

(25) Cfr., por todos, o acórdão de 02.10.2007, citado na nota anterior, e a jurisprudência nele citado.